sábado, 27 de março de 2010

Marguerite Yourcenar - Sequência de Páscoa: uma das mais belas histórias do mundo

Deixo por momentos ao menos as cerimónias e os ritos da mais santa das semanas cristãs e tento extrair dos textos sagrados que se lêem mas nem sempre se ouvem, na igreja, as partes que nos impressionariam se as encontrássemos em Dostoievski ou Tolstoi, ou em qualquer biografia ou reportagem sobre a vida de um grande homem ou de uma grande vítima. Em suma, o desenrolar de uma das mais belas histórias do mundo.

Um prólogo quase irónico: uma pobre gente chega à capital com o seu mestre bem-amado, aclamado pela mesma multidão que em breve o repudiará. Uma refeição de festa frugal: um traidor adivinhado entre os doze convivas; um ingénuo que proclama alto a sua fidelidade e será o primeiro a fraquejar; o mais jovem e mais amado apoiado com indolência ao ombro do mestre, talvez envolto naquele casulo dourado que sempre protege a juventude; o mestre, isolado, pela sabedoria e pela visão, no meio dos ignorantes e dos fracos que são o que ele encontrou de melhor para o seguirem e continuarem a sua obra.

Caída a noite, o mestre, ainda mais só no canto de um pomar que domina a cidade onde todos, excepto os seus inimigos, o esqueceram: as longas horas negras onde a presciência se convola em angústia; a vítima a rezar para que a prova esperada lhe seja poupada, mas sabendo que o não pode ser e também que, «se tivesse de o refazer», faria o mesmo caminho; «a alma eterna» que observa o seu voto «apesar da solidão da noite». (Que Aragon e Rimbaud nos ajudem a compreender Marcos ou João). Enquanto ele sofre, os seus amigos dormem, incapazes de compreender a urgência do momento. «Não podeis vigiar um momento comigo»? Não: eles não podem; eles têm sono; e aquele que os chama não ignora que virá o tempo em que estes infelizes terão também de sofrer e vigiar.

A chegada do bando, para prender o acusado. O ardente defensor que se arrisca a piorar as coisas e se desdirá logo a seguir. Os dois aparelhos, o eclesiástico e o laico, incomodados, passando-se mutuamente o acusado; o eterno diálogo da fé e do cepticismo completando-se um ao outro: «Quem ama a verdade escuta-me.» - «O que é a verdade?» O alto funcionário ultrapassado que gostaria bem de lavar as mãos deste caso e entrega à multidão a escolha do preso a libertar para a festa próxima, e o que ela escolhe é evidentemente a vedeta do crime, e não o justo inocente. O condenado, insultado, flagelado, atormentado, por brutamontes que são provavelmente bons pais de família, bons vizinhos, boas pessoas, obrigado a arrastar a trave do seu martírio como, nos campos, por vezes os prisioneiros arrastavam uma pá para cavar a sepultura. O pequeno grupo de amigos que ficou com o supliciado, aceitando a humilhação e o perigo que decorrem da fidelidade. A algazarra dos guardas que disputam entre si a túnica esvaziada, como em tempo de guerra os camaradas de um morto lutam às vezes por um cinturão ou por umas botas.

A ternura revelando-se nas recomendações aos seus, por parte de alguém até então demasiado absorvido pela sua missão para ter tempo de pensar neles: o moribundo dando como filho à sua mãe o seu melhor amigo. (Assim hoje por toda a parte as últimas cartas de condenados ou soldados partindo em missão de que não voltarão, cheias de conselhos sobre o casamento da irmã ou a pensão da velha mãe.) A troca de palavras com um condenado de delito comum em quem se encontrou um homem de coração; a longa agonia ao sol, ao vento agreste, à vista da multidão que, pouco a pouco, se vai porque aquilo nunca mais acaba. A exclamação parece indicar que, para que tudo se cumpra, o desespero é um estado por que se tem de passar. «Porque me abandonaste?» E, horas depois, a esta pobre gente será dada como esmola uma sepultura para o seu corpo, e as sentinelas (há que desconfiar dos ajuntamentos) dormirão ao pé do muro como antes dormiram junto do amigo vivo e angustiado os seus humildes companheiros fatigados.

E que mais? As horas, os dias, as semanas que escorrem entre o luto e a confiança, entre fantasmas e Deus, nessa atmosfera crepuscular onde nada é totalmente confirmado, verificado, concludente, mas onde passa a corrente de ar do inexplicável, como alguns desses pobres relatórios de sociedades para o avanço das ciências psíquicas, tanto mais perturbantes quanto são inconclusivos. A antiga meretriz vinda ao cemitério rezar e chorar e julgando reconhecer aquele que perdeu no jardineiro. (Que melhor nome poderia dar-se àquele que faz crescer tantas sementes na alma humana?) E mais tarde, quando a emoção, como dizem os relatórios de polícia, acalmou, os dois fiéis pela rua fora, a quem se junta um simpático viajante que aceita sentar-se com eles à mesa da hospedaria, e desaparece no momento em que eles julgam reconhecê-lo. Uma das mais belas histórias do mundo termina com os reflexos de uma Presença, bastante semelhantes a nuvens que o Sol já posto ainda ilumina.

«Eu sentir-me-ía mais perto de Jesus se ele tivesse sido fuzilado em vez de crucificado», dizia-me um dia um jovem oficial vindo da Guerra da Coreia. Foi para ele e para todos aqueles a quem é difícil encontrar o essencial por baixo dos acessórios do passado que aceitei o risco de escrever o que precede. (1977)

de O tempo esse grande escultor, Difel, Lisboa, 1984, p. 107


terça-feira, 23 de março de 2010

Fernando Pessoa/ Bernardo Soares - "Que me pesa que ninguém leia o que escrevo?"

Que me pesa que ninguém leia o que escrevo? Escrevo-me para me distrair de viver, e publico-me porque o jogo tem essa regra. Se amanhã se perdessem todos os meus escritos, teria pena, mas, creio bem, não com pena violenta e louca como seria de supor, pois que em tudo isso ia toda a minha vida. Não é certo, pois, que a mãe, morto o filho, meses depois já ri e é a mesma. A grande terra que serve os mortos serviria, menos maternalmente, esses papéis. Tudo não importa e creio bem que houve quem visse a vida sem uma grande paciência para essa criança acordada e com grande desejo do sossego de quando ela, enfim, se tinha ido deitar.
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de Livro do Desassossego, texto 118, ou p. 129 da 3.ª edição da Assírio & Alvim

domingo, 14 de março de 2010

Fernando Pessoa/ Ricardo Reis - "Põe quanto és no mínimo que fazes"

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Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
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Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
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Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.
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Odes/ Ricardo Reis

quarta-feira, 10 de março de 2010

Natália Correia - "No meu aniversário" (homenagem no 17.º aniversário da morte)

No meu aniversário

Já por cinquenta e tal esta jangada

Do corpo em águas negras abrevia

De Aqueronte a outra margem; e corada

De moça fica a alma à rebelia

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Da ruga pelo tempo concertada.

Pede bengala a reuma? Assim a Pítia

Pede o tripé que só nele sentada

Inala os fumos da Sabedoria.

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Amigos que ao fortuito aniversário,

Por édito de torto calendário,

Cinquenta e tal hortênsias me trazeis!

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Pelos anos letais descendo as pernas,

Sobe a alma por louros às lanternas

Do canto que me furta a humanas leis.

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(13/09/1923-10/03/1993)

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De Poesia Completa, D. Quixote, 1999

sábado, 6 de março de 2010

Mário Pinto de Andrade - "O valioso tempo dos maduros"

O valioso tempo dos maduros

Contei meus anos e descobri que terei menos tempo para viver daqui para a frente do que já vivi até agora.
Tenho muito mais passado do que futuro.
Sinto-me como aquele menino que recebeu uma bacia de cerejas.
As primeiras, ele chupou displicente, mas percebendo que faltam
poucas, rói o caroço.
Já não tenho tempo para lidar com mediocridades.
Não quero estar em reuniões onde desfilam egos inflamados.
Inquieto-me com invejosos tentando destruir quem eles admiram,
cobiçando seus lugares, talentos e sorte.
Já não tenho tempo para conversas intermináveis, para discutir
assuntos inúteis sobre vidas alheias que nem fazem parte da minha.
Já não tenho tempo para administrar melindres de pessoas, que apesar da idade cronológica, são imaturos.
Detesto fazer acareação de desafectos que brigaram pelo majestoso cargo de secretário-geral do coral.
'As pessoas não debatem conteúdos, apenas os rótulos'.
Meu tempo tornou-se escasso para debater rótulos, quero a essência,
minha alma tem pressa...
Sem muitas cerejas na bacia, quero viver ao lado de gente humana,
muito humana; que sabe rir de seus tropeços, não se encanta com
triunfos, não se considera eleita antes da hora, não foge de sua mortalidade,
Caminhar perto de coisas e pessoas de verdade,
O essencial faz a vida valer a pena.
E para mim, basta o essencial!

Mário Pinto de Andrade
Escritor e político angolano, de nome completo Mário Coelho Pinto de Andrade.
(1928-1990)

Nota: a todos quantos têm visitado esta página pensando tratar-se de um texto do escritor brasileiro Mário de Andrade, apresento desculpas, uma vez que o nome não estava tão completo.

terça-feira, 2 de março de 2010

Cardeal Cerejeira, O Príncipe da Igreja - livro de Irene Pimentel

Este livro de Irene Pimentel será apresentado no próximo dia 9 de Março, terça-feira, entre as 18.30 e as 20.00 h na Livraria Bulhosa, a Entrecampos, em Lisboa.