Para esta simples homenagem a Albert Camus escolhi um excerto do livro O Mito de Sísifo, e do capítulo As Paredes Absurdas: «O sentimento do absurdo pode esbofetear qualquer homem à esquina de qualquer rua. Em si mesmo, na sua nudez desoladora, na sua luz sem esplendor, é inapreensível. Mas até essa dificuldade merece reflexão. É provavelmente verdade que um homem nos fica sempre desconhecido e que nele sempre subsiste qualquer coisa de irredutível que nos escapa. Mas praticamente conheço os homens e reconheço-os pela sua conduta, pelo conjunto dos seus actos, pelas consequências que a sua passagem suscita na vida. Da mesma maneira posso praticamente definir, praticamente apreciar todos esses sentimentos irracionais que a análise não consegue captar. Para tanto me basta reunir a soma das suas consequências na ordem da inteligência, surpreender-lhes e fixar-lhes a face, delimitar-lhes o universo. É certo que, aparentemente, lá por ter visto cem vezes o mesmo actor, nem por isso o conheço pessoalmente melhor. No entanto, se eu adicionar os heróis que ele encarnou e disser que o conheço um pouco mais por ocasião da centésima personagem recenseada, sente-se que há aqui uma parte de verdade. Porque este paradoxo aparente é também um apólogo. Tem uma moralidade. Ensina que um homem se define tão bem através das suas comédias como através dos seus impulsos sinceros. Assim acontece, um tom abaixo, com os sentimentos, inacessíveis no coração, mas parcialmente traídos pelos actos que eles animam e pelas atitudes de espírito que pressupõem. Vê-se bem que defino assim um método. Mas vê-se também que esse método é de análise e não de conhecimento. Porque os métodos implicam metafísicas, atraiçoam, sem se darem conta disso, as conclusões que por vezes pretendem não conhecer ainda. Assim, as últimas páginas de um livro já estão nas primeiras. Esta ligação é inevitável. O método aqui definido confessa o sentimento de que todo o verdadeiro conhecimento é impossível. Só as aparências podem enumerar-se e o clima fazer-se sentir.
Esse inacessível sentimento do absurdo, talvez o possamos então atingir em mundos diferentes, mas fraternais, da inteligência, da arte de viver, ou simplesmente da arte. O clima do absurdo está no início. O fim é o universo absurdo e essa atitude de espírito que ilumina o mundo a uma luz que lhe é própria, a fim de fazer resplandecer o rosto privilegiado e implacável que esta lhe sabe reconhecer.»
O Mito de Sísifo, Livros do Brasil, Lisboa, 1983, pp. 22/24
Albert Camus 07/11/1913 - 04/01/1960
Prémio Nobel da Literatura em 1957
2 comentários:
Eu li este livro, na minha adolescência e agora estava a ler este fragmento e fiquei a pensar, na distância de muitos anos, como é que eu teria assimilado esta complexidade!..O que é certo, é que nessa altura comprei tudo o que havia a comprar de Camus: romances, teatro, contos, diários...estão para aí e gostaria de ter tempo para reler tudo presentemente, com outra bagagem, mas tanto ainda tenho para ler!!!
Que a vida é um absurdo, sempre foi o meu pensamento constante!!!
Bj,
Manuela
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Olá Manuela,
Leu-o na sua adolescência, bem como outros livros, porque era, certamente, uma jovem sedenta por saber e por decifrar as suas próprias inquietações. Mas o modo como o "assimilou", como diz, por certo não será equiparável ao modo como o entenderia agora, se voltasse a ele.
Eu andei a "queimar as pestanas" na Universidade e, mesmo assim, todos os dias encontro sentidos novos nas minhas releituras e/ou estudos.
Beijinho e boa noite :)
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