Direito e Avesso
domingo, 30 de julho de 2023
Cecília Meireles, Como se morre de velhice
quarta-feira, 28 de dezembro de 2022
Sophia de Mello Breyner Andresen - Quando
sexta-feira, 25 de novembro de 2022
Herberto Helder - No meu tempo não era assim
"Ficar velho deve ser, presumimos, ficar preso a noções e ambições que constituíram a aposta do tempo da juventude. Mas as pessoas esquecem que, enquanto vão aplicando essas noções e ambições, outras pessoas nascem e se fazem homens, tendo do mundo uma visão diferente. E é a visão mais recente - até que outra mais nova ainda a venha substituir - que garante a sobrevivência espiritual e material do homem no mundo. Assim, aos que se não encontram em estado de vigilante disponibilidade será recusada a compreensão sempre refeita da realidade. É essa mesma massa humana que se torna um peso para o próprio desejo humano de progressão, que se faz obstáculo ao dinamismo natural da vida. Por mais argumentos que julgue encontrar, a velhice nunca tem razão. Não há plano de realidade, nem tipo de actividade, onde isto não seja assim. (…) O mal das sociedades que se orgulham de uma grande tradição cultural é que supõem haver encontrado a forma definitiva de resolver os problemas todos. Passa-lhes desapercebida a qualidade dinâmica da realidade e a exigência que esse mesmo dinamismo tem de instrumento, que da tradição apenas aproveitem aquilo que não morreu e que normalmente é muito menos do que se pensa. Em todos os domínios, há Velhos do Restelo, que ficam à borda de água meneando sabichonamente a cabeça e falando da loucura do mundo. Dizem eles: no meu tempo não era assim. Pois não era, senhores cadáveres."
segunda-feira, 27 de dezembro de 2021
Eugénio de Andrade - Último Poema
domingo, 11 de julho de 2021
Ana Luísa Amaral, Ode à Diferença
Somos todos diferentes. Temos todos
o nosso espaço próprio de coisinhas
próprias, como narizes e manias,
bocas, sonhos, olhos que vêem céus
em daltonismos próprios. Felizmente.
Se não o mundo era uma bola enorme
de sabão e nós todos lá dentro
a borbulhar, todos iguais em sopro:
pequenas explosões de crateras iguais.
Assim e felizmente somos todos
diferentes. Se não a terapia
em grupo era um sucesso e o que é certo
é sermos mais felizes a explorar
solitários o nosso próprio espaço
de manias, de traumas, de unhas dos pés
invaloradas pela nossa cultura
(que lá no Oriente o pé é o caso sério,
motivo sensual e explorativo).
Começa por aí: o mundo di-
vidido por atávicos ritmos
— e outras coisas somenos como guerras
ou fomes (Note Bem: a criatura
é céptica e tem um gosto péssimo,
mas veja-se outros textos que redimem
em sério o que aqui diz. Cf. por ex.
o que quiser, mas deixe a criatura
regalar-se por se pensar — coitada —
incómoda e sonora). Prova evidente
de que somos diferentes, felizmente.
Começa por aí: no mundo divi-
dido — e continua em raças e
raízes. Nós somos portugueses,
tão felizes, com tanta história atrás
e tantos feitos, tantas coisinhas próprias
de delícia: o mar que nos gerou,
e o resto tudo, são bolas pequeninas
de sabão a atestar da diferença
do nosso irmão do lado, esse infeliz
cheio de recalques de tradições e línguas,
paella e calamares. Tem boca como
nós: não canta o fado. Tem pernas como
nós: não dança o vira. Contenta-se
— coitado — com flamencos chorados
e falanges doridas. Somos todos
diferentes, felizmente (Note Bem:
[se a sua paciência ainda não
fugiu despavorida — é sem dê,
mas ela insiste em respeitar
o ritmo —]: isto que a criatura
repete e reafirma, quando em quando,
não deve ser tomado em ligeireza
como sinal senil [aliterou!],
mas como tentativa suicida
de oferecer unidade ao que o não tem,
moralizar o texto a pouco e pouco,
dar-lhe uma ideia igual, ser um mote
formal a contrabalançar a tal
prova evidente. Que de diferenças
estamos todos cheios e isto
pretendia-se uma ode e não foi).
Felizmente.
quinta-feira, 3 de janeiro de 2019
Vasco Graça Moura-Lamento para a língua portuguesa
e crescemos em ti. nem se imagina
que alguma vez uma outra língua possa
pôr-te incolor, ou inodora, insossa,
ser remédio brutal, mera aspirina,
ou tirar-nos de vez de alguma fossa,
ou dar-nos vida nova e repentina.
mas é o teu país que te destroça,
o teu próprio país quer-te esquecer
e a sua condição te contamina
e no seu dia a dia te assassina.
mostras por ti o que lhe vais fazer:
vai-se por cá mingando e desistindo,
e desde ti nos deitas a perder
e fazes com que fuja o teu poder
enquanto o mundo vai de nós fugindo:
ruiu a casa que és do nosso ser
e este anda por isso desavindo
connosco, no sentir e no entender,
mas sem que a desavença nos importe
nós já falamos nem sequer fingindo
que só ruínas vamos repetindo.
talvez seja o processo ou o desnorte
que mostra como é realidade
a relação da língua com a morte,
o nó que faz com ela e que entrecorte
a corrente da vida na cidade.
mais valia que fossem de outra sorte
em cada um a força da vontade
e tão filosofais melancolias
nessa escusada busca da verdade
e que a ti nos prendesse melhor grade.
bem que ao longo do tempo ensurdecias,
nublando-se entre nós os teus cristais,
e entre gentes remotas descobrias
o que não eram notas tropicais
mas coisas tuas que não tinhas mais,
perdidas no enredar das nossas vias
por desvairados, lúgubres sinais,
mísera sorte, estranha condição,
em que, por nos perdermos, te perdias.
neste turvo presente tu te esvais,
por ser combate de armas desiguais.
matam-te a casa, a escola, a profissão,
a técnica, a ciência, a propaganda,
o discurso político, a paixão
de estranhas novidades, a ciranda
da violência alvar que não abranda
entre rádios, jornais, televisão.
e toda a gente o diz, mesmo essa que anda
por tempos de ignomínia mais feliz
e o repete por luxo e não comanda,
com o bafo de hienas dos covis,
mais que uma vela vã nos ventos panda
cheia do podre cheiro a que tresanda.
foste memória, música e matriz
de um áspero combate: apreender
e dominar o mundo e as mais subtis
equações em que é igual a xis
qualquer das dimensões do conhecer,
dizer de amor e morte, e a quem quis
e soube utilizar-te, do viver,
do mais simples viver quotidiano,
de ilusões e silêncios, desengano,
sombras e luz, risadas e prazer
e dor e sofrimento, e de ano a ano,
passarem aves, ceifas, estações,
o trabalho, o sossego, o tempo insano
do sobressalto a vir a todo o pano,
e bonanças também e tais razões
que no mundo costumam suceder
e deslumbram na só variedade
de seu modo, lugar e qualidade,
e coisas certas, inexactidões,
venturas, infortúnios, cativeiros,
e paisagens e luas e monções,
e os caminhos da terra a percorrer,
e arados, atrelagens e veleiros,
pedacinhos de conchas, verde jade,
doces luminescências e luzeiros,
que podias dizer e desdizer
no teu corpo de tempo e liberdade.
agora que és refugo e cicatriz
esperança nenhuma hás-de manter:
o teu próprio domínio foi proscrito,
laje de lousa gasta em que algum giz
se esborratou informe em borrões vis.
de assim acontecer, ficou-te o mito
de seres de vastos, vários e distantes
mundos que serves mal nos degradantes
modos de nós contigo. nem o grito
da vida e do poema são bastantes,
por ser devido a um outro e duro atrito
que tu partiste até as próprias jantes
nos estradões da história: estava escrito
que iam desconjuntar-te os teus falantes
na terra em que nasceste. eu acredito
que te fizeram avaria grossa.
não rodarás nas rotas como dantes,
quer murmures, escrevas, fales, cantes,
mas apesar de tudo ainda és nossa,
e crescemos em ti. nem imaginas
que alguma vez uma outra língua possa
pôr-te incolor, ou inodora, insossa,
ser remédio brutal, vãs aspirinas,
ou tirar-nos de vez de alguma fossa,
ou dar-nos vidas novas repentinas.
enredada em vilezas, ódios, troça,
no teu próprio país te contaminas
e é dele essa miséria que te roça.
mas com o que te resta me iluminas.
terça-feira, 11 de setembro de 2018
W.B.Yeats, Quando fores velha
sábado, 13 de setembro de 2014
Natália Correia, Ode à Paz
Pela verdade, pelo riso, pela luz, pela beleza,
pelas aves que voam no olhar de uma criança,
pela limpeza do vento, pelos actos de pureza,
pela alegria, pelo vinho, pela música, pela dança,
pela branda melodia do rumor dos regatos,
pelo fulgor do estio, pelo azul do claro dia,
pelas flores que esmaltam os campos, pelo sossego dos pastos,
pela exactidão das rosas, pela Sabedoria,
pelas pérolas que gotejam dos olhos dos amantes,
pelos prodígios que são verdadeiros nos sonhos,
pelo amor, pela liberdade, pelas coisas radiantes,
pelos aromas maduros de suaves outonos,
pela futura manhã dos grandes transparentes,
pelas entranhas maternas e fecundas da terra,
pelas lágrimas das mães a quem nuvens sangrentas
arrebatam os filhos para a torpeza da guerra,
eu te conjuro ó paz, eu te invoco ó benigna,
ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz.
Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira,
com o teu esconjuro da bomba e do algoz,
abre as portas da História,
deixa passar a Vida!
NATÁLIA CORREIA (13/9/1923 – 16/3/1993)
Em “ Inéditos”