sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Florbela Espanca - Soneto "Esquecimento"

Esse de quem eu era e que era meu,
Que foi um sonho e foi realidade,
Que me vestiu a alma de saudade,
Para sempre de mim desapareceu.
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Tudo em redor então escureceu,
E foi longínqua toda a claridade!
Ceguei ... tacteio sombras ... que ansiedade!
Apalpo cinzas porque tudo ardeu!
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Descem em mim poentes de Novembro ...
A sombra dos meus olhos, a escurecer ...
Veste de roxo e negro os crisântemos ...
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E desse que era meu já me não lembro ...
Ah! a doce agonia de esquecer
A lembrar doidamente o que esquecemos! ...

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Natália Correia - poema "Do dever de deslumbrar"

A inútil tragédia da vida
Não chega a merecer um poema
Só o poema merece, por vezes,
A inútil tragédia da vida.
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As pessoas caem como folhas
E secam no pó do desalento
Se não as leva consigo
A fúria poética do vento.
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Para que se justifique a nossa vida
É preciso que alguém a invente em nós.
Os que nunca inspiraram um poema
São as únicas pessoas sós.
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in Poesia Completa, O Sol nas Noites e o Luar nos Dias, D. Quixote, Lisboa, 1999

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Fernando Pessoa/Alberto Caeiro - poema de "O Pastor Amoroso"

O amor é uma companhia.
Já não sei andar só pelos caminhos,
Porque já não posso andar só.
Um pensamento visível faz-me andar mais depressa
E ver menos, e ao mesmo tempo gostar bem de ir vendo tudo.
Mesmo a ausência dela é uma coisa que está comigo.
E eu gosto tanto dela que não sei como a desejar
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Se a não vejo, imagino-a e sou forte como as árvores altas.
Mas se a vejo tremo, não sei o que é feito do que sinto na ausência dela.
Todo eu sou qualquer força que me abandona.
Toda a realidade olha para mim como um girassol com a cara dela no meio.
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Poema de O PASTOR AMOROSO, 1930

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Nietzsche (as carantonhas dos dogmatismos)

«Admitindo que a verdade seja mulher, não será justificado suspeitar que todos os filósofos, conquanto dogmáticos, pouco percebiam de mulheres? Que o sério trágico, a inoportuna falta de tacto que até agora têm empregado para atingir a verdade, eram meios demasiado desastrados e inconvenientes para conquistar o coração de uma mulher? Certo é que ela não se deixou conquistar; e toda a espécie de dogmática toma hoje uma atitude triste e desencorajada, se é que ainda toma alguma atitude. É que há trocistas que pretendem que toda a dogmática caíu por terra - pior ainda, que agoniza. Falando a sério, creio que há bons motivos para esperar que todo o dogmatismo em filosofia - por mais solene e definitivo que se tenha apresentado - não tenha sido mais do que uma nobre criancice e um balbuciar. E talvez não venha longe o tempo em que se compreenderá cada vez mais o que no fundo bastou para a primeira pedra desses edifícios filosóficos, sublimes e absolutos, erguidos até agora pelos dogmáticos: uma superstição popular qualquer, dos mais recuados tempos (como, por exemplo, a superstição da alma que, sob a forma de superstição do sujeito e do eu, também ainda hoje não deixou de fazer das suas); talvez um trocadilho, um equívoco gramatical, ou qualquer generalização temerária de factos muito restritos, muito pessoais, muito humanos, demasiado humanos. A filosofia dos dogmáticos não foi, esperemo-lo, mais do que uma promessa feita para milhares de anos, como no caso da astrologia, numa época anterior ainda - da astrologia, ao serviço da qual se despendeu talvez mais trabalho, dinheiro, perspicácia, do que desde sempre se despendeu com qualquer ciência verdadeira - é a ela e às suas aspirações "supraterrenas" que se deve, na Ásia e no Egipto, a arquitectura de grande estilo. Parece que, para gravar no coração da humanidade as suas eternas exigências, todas as grandes coisas devem errar primeiro na terra como carantonhas monstruosas e terríficas. A filosofia dogmática foi uma dessas carantonhas quando se manifestou na doutrina dos Veda, na Ásia, ou no Platonismo, na Europa. Não sejamos ingratos para com ela, embora se deva confessar que o erro mais nefasto, mais persistente e mais perigoso até hoje cometido foi o erro dos dogmáticos; refiro-me à invenção do espírito puro e do bem em si, feita por Platão. Mas agora que este erro foi superado, agora que a Europa liberta deste pesadelo volta a respirar e usufrui pelo menos um sono mais salutar, somos nós, nós cujo dever é precisamente a vigília, quem herda toda a força que a luta contra este erro fez crescer. Falar do espírito e do bem à maneira de Platão seria de facto deturpar a verdade e negar a própria perspectiva, condição fundamental de toda a vida. Poderia mesmo perguntar-se, como médico, de onde provém tal moléstia no mais belo fruto da antiguidade, que é Platão? Tê-lo-ia corrompido o malicioso Sócrates? Sempre teria sido Sócrates o corruptor da juventude? Teria ele merecido a cicuta? Mas a luta contra Platão ou, para falar mais compreensivamente e para o "povo", a luta contra a opressão cristiano-eclesiástica exercida desde há milhares de anos - porque o cristianismo é platonismo para o "povo" - criou na Europa uma maravilhosa tensão de espírito que nunca havia existido na terra: e com um arco tão fortemente tenso é possível agora atirar aos alvos mais longínquos. É verdade que o homem da Europa sente esta tensão como um mal e, por duas vezes, fizeram-se amplas tentativas para afrouxar o arco: primeiro, pelo Jesuítismo e em seguida pelo Iluminismo democrático. Com auxílio da liberdade de imprensa, da leitura dos jornais, talvez se pudesse realmente conseguir que o espírito já não se considere tão facilmente um "mal"! (Os Alemães inventaram a pólvora - as nossas felicitações! -, mas depois estragaram tudo, inventaram a imprensa.) Mas nós que nem somos jesuítas, nem democratas, nem mesmo suficientemente alemães, nós, bons europeus e espíritos livres, muito livres - possuímos ainda todo o mal do espírito e toda a tensão do seu arco! E talvez também a flecha, a missão e, quem sabe?, o alvo...»
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Sils Maria, Oberengadin, Junho de 1885.
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Prefácio do livro Para além do bem e do mal

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Fernando Pessoa/Bernardo Soares

«Mas a exclusão, que me impus, dos fins e dos movimentos da vida; a ruptura, que procurei, do meu contacto com as coisas - levou-me precisamente àquilo a que eu procurava fugir. Eu não queria sentir a vida, nem tocar nas coisas, sabendo, pela experiência do meu temperamento em contágio do mundo, que a sensação da vida era sempre dolorosa para mim. Mas ao evitar esse contacto, isolei-me, e, isolando-me, exacerbei a minha sensibilidade já excessiva. Se fosse possível cortar de todo o contacto com as coisas, bem iria à minha sensibilidade. Mas esse isolamento total não pode realizar-se. Por menos que eu faça, respiro; por menos que aja, movo-me. E, assim, conseguindo exacerbar a minha sensibilidade pelo isolamento, consegui que os factos mínimos, que antes mesmo a mim nada fariam, me ferissem como catástrofes. Errei o método de fuga. Fugi, por um rodeio incómodo, para o mesmo lugar onde estava, com o cansaço da viagem sobre o horror de viver ali.
(...) Levei tempo a convencer-me deste lamentável equívoco em que vivo comigo. Convencido dele, fiquei desgostoso, o que sempre me acontece quando me convenço de qualquer coisa, porque o convencimento é em mim sempre a perda de uma ilusão.
Matei a vontade a analisá-la. Quem me tornara a infância antes da análise, ainda que antes da vontade!»
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in Livro do Desassossego, texto 462

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Música de câmara na Casa Fernando Pessoa

No dia 20 de Novembro, sexta-feira, pelas 18.30h, na Casa Fernando Pessoa inicia-se um ciclo de música de câmara por solistas da Orquestra Metropolitana de Lisboa. Entrada livre.
Liviu Scripcaru, violino
Nuno Inácio, flauta
Anna Tomasik, piano


Fonte: Mundo Pessoa

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

ELECTRI-CIDADE livro de poemas de Vítor Oliveira Jorge

No próximo dia 17, terça-feira, na Casa Fernando Pessoa, será apresentado, pelas 19.00h, o livro de poemas ELECTRI-CIDADE do arqueólogo, poeta e ensaísta Vítor Oliveira Jorge, e também autor do blogue Trans-ferir.
A apresentação deste livro, publicado pela Colibri, será feita por Casimiro de Brito.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Fernando Pessoa/Alberto Caeiro - 8.º poema de O Guardador de Rebanhos

Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
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Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.
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Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas -
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
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Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!
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Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez com que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.
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A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as coisas.
Aponta-me todas as coisas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.
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Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem-Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou -
"Se é que ele as criou, do que duvido" -.
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"Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres".
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.
(...)
Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.
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E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.
.
A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo o que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.
A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direcção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.
.
Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.
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Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo o universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.
.
Depois eu conto-lhe histórias das coisas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do sol
A variar os montes e os vales
E a fazer doer aos olhos os muros caiados.
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Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.
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Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.
(...)
Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.
(...)
Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
Não há-de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?
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Do Oitavo Poema de «O GUARDADOR DE REBANHOS", 1914.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Florbela Espanca - Soneto "O meu impossível"

Minh'alma ardente é uma fogueira acesa,
É um brasido enorme a crepitar!
Ânsia de procurar sem encontrar
A chama onde queimar uma incerteza!
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Tudo é vago e incompleto! E o que mais pesa
É nada ser perfeito. É deslumbrar
A noite tormentosa até cegar,
E tudo ser em vão! Deus, que tristeza!...
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Aos meus irmãos na dor já disse tudo
E não me compreenderam!... Vão e mudo
Foi tudo o que entendi e o que pressinto...
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Mas se eu pudesse a mágoa que em mim chora
Contar, não a chorava como agora,
Irmãos, não a sentia como a sinto!...

sábado, 7 de novembro de 2009

Henri Bergson - Significado da alegria

«Os filósofos que especularam sobre o significado da vida e sobre o destino do homem deram-se conta de que a natureza se encarregou de nos informar sobre isso. Com um sinal preciso adverte-nos quando se alcançou o nosso destino. Esse sinal é a alegria. Digo a alegria, e não o prazer. O prazer é apenas um artifício imaginado pela natureza para obter do ser vivo a conservação da vida; não indica a direcção em que está lançada a vida. Mas a alegria indica sempre que a vida triunfou, que ganhou terreno, que conseguiu uma vitória. Toda a grande alegria tem um acento triunfal. Se tivermos em conta essa indicação e seguirmos essa nova linha de acontecimentos, descobriremos que onde quer que haja alegria há criação; quanto mais rica é a criação, mais profunda é a alegria. A mãe que contempla o seu filho sente-se contente porque tem consciência de tê-lo criado psíquica e moralmente. O comerciante que desenvolve os seus negócios, o chefe de fábrica que vê prosperar a sua indústria, por acaso sentem-se contentes pelo dinheiro que ganham e pela fama que adquirem? Riqueza e consideração contam muito evidentemente na satisfação que sentem, mas proporcionam-lhes prazeres e não tanto alegria, e o que saboreia com autêntica alegria é o sentimento de ter montado uma empresa que tem sucesso, de ter dado vida a algo. Consideremos alegrias excepcionais, como a do artista que realizou o que tinha em mente e a do cientista que descobriu ou inventou algo. Ouve-se dizer que esses homens trabalham pela glória e que a sua maior alegria está na admiração que se lhes tributa. Grande erro! Só se prende aos elogios e às honras quem não está seguro de ter triunfado. No fundo da vaidade há modéstia. Procura-se a aprovação para obter segurança, e para sustentar a vitalidade, talvez insuficiente da própria obra, procura-se rodear esta da cálida admiração dos homens, do mesmo modo que se enrola em algodão uma criança prematura, nascido antes do tempo. Mas o que está seguro, completamente seguro, de ter produzido uma obra viável e duradoura, para esse o elogio não conta para nada, e sente-se acima da glória, porque é criador e sabe-o, e porque a alegria que experimenta com isso é uma alegria divina. Portanto, se em todos os domínios o triunfo da vida é a criação, não deveríamos supor que a vida humana tem a sua razão de ser numa criação, diferente da do artista e da do cientista, porque prossegue em todo o momento e em todos os homens? É a criação de si mesmo por si mesmo, o crescimento da personalidade mediante um esforço que extrai o muito do pouco, que extrai algo do nada, acrescentando sem cessar algo à riqueza que já existia no mundo.
Vista de fora, a natureza aparece como uma imensa eflorescência de novidade imprevisível; a força que a anima parece criar por amor, para nada, por puro prazer, a variedade sem fim das espécies vegetais e animais; a cada uma confere-lhe o valor absoluto de uma grande obra de arte; dir-se-ìa que se consagra tanto à primeira que realizou como às outras, tanto como ao homem. Mas a forma de um ser vivo, uma vez traçada, repete-se indefinidamente; e os actos desse ser vivo, uma vez realizados, tendem a imitar-se a si mesmos e a repetir-se de um modo automático. Automatismo e repetição, que dominam em toda a parte excepto no homem, deveriam advertir-nos que estamos a fazer uma paragem, e que o passo que estamos marcando, sem avançar, não é o movimento próprio da vida. O ponto de vista do artista é importante, mas não é definitivo. A riqueza e a originalidade das formas denotam uma expansão da vida; mas nessa expansão, cuja beleza significa potência, a vida manifesta igualmente uma paragem ou suspensão do seu impulso e uma impotência momentânea para chegar mais longe, como a criança que termina com uma volta graciosa a sua patinagem.»
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Henri Bergson (1859-1941)
Prémio Nobel da Literatura em 1928.
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in La Energía Espiritual, Espasa-Calpe, Madrid, 1982, pp 32-34
(tradução da minha responsabilidade)

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Fernando Pessoa/Bernardo Soares

«Em todos os lugares da vida, em todas as situações e convivências, eu fui sempre, para todos, um intruso. Pelo menos, fui sempre um estranho. No meio de parentes, como no de conhecidos, fui sempre sentido como alguém de fora. Não digo que o fui, uma só vez sequer, de caso pensado. Mas fui-o sempre por uma atitude espontânea da média dos temperamentos alheios.
Fui sempre, em toda a parte e por todos, tratado com simpatia. A pouquíssimos, creio, terá tão pouca gente erguido a voz, ou franzido a testa, ou falado alto ou de terça. Mas a simpatia, com que sempre me trataram, foi sempre isenta de afeição. Para os mais naturalmente íntimos fui sempre um hóspede, que, por hóspede, é bem tratado, mas sempre com a atenção devida ao estranho, e a falta de afeição merecida pelo intruso.
Não duvido que tudo isto, da atitude dos outros, derive principalmente de qualquer obscura causa intrínseca ao meu próprio temperamento. Sou porventura de uma frieza comunicativa, que involuntariamente obriga os outros a reflectirem o meu modo de sentir.
Travo, por índole, rapidamente conhecimentos. Tardam-me pouco as simpatias dos outros. Mas as afeições nunca chegam. Dedicações nunca as conheci. Amarem, foi coisa que sempre me pareceu impossível, como um estranho tratar-me por tu.
Não sei se sofra com isto, se o aceite como um destino indiferente, em que não há nem que sofrer nem que aceitar.
Desejei sempre agradar. Doeu-me sempre que me fossem indiferentes. Órfão da Fortuna, tenho, como todos os órfãos, a necessidade de ser objecto da afeição de alguém. Passei sempre fome da realização dessa necessidade. Tanto me adaptei a essa fome inevitável que, por vezes, nem sei se sinto a necessidade de comer.
Com isto ou sem isto a vida dói-me.

Os outros têm quem se lhes dedique. Eu nunca tive quem sequer pensasse em se me dedicar. Servem os outros: a mim tratam-me bem.
Reconheço em mim a capacidade de provocar respeito, mas não afeição. (...)
Julgo à vezes que gozo sofrer. Mas na verdade eu preferiria outra coisa.
Não tenho qualidades de Chefe, nem de sequaz. Nem sequer as tenho de satisfeito, que são as que valem quando essas outras faltem.
Outros, menos inteligentes que eu, são mais fortes. Talham melhor a sua vida entre gente; administram mais habilmente a sua inteligência. Tenho todas as qualidades para influir, menos a arte de o fazer, ou a vontade, mesmo, de o desejar.
Se um dia amasse, não seria amado.
Basta eu querer uma coisa para ela morrer. O meu destino, porém, não tem a força de ser mortal para qualquer coisa. Tem a fraqueza de ser mortal nas coisas para mim.»
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in Livro do Desassossego (texto 429)

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Filme do Desassossego por João Botelho

João Botelho é o realizador do Filme do Desassossego, cuja rodagem se inicia este mês em Lisboa, em homenagem ao Livro do Desassossego de Bernardo Soares, semi-heterónimo de Fernando Pessoa. Este filme será financiado pelo ICA, pela Câmara Municipal de Lisboa e pela RTP.
João Botelho já tinha realizado, em 1981, o filme Conversa Acabada, sobre Pessoa e Mário de Sá-Carneiro.
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domingo, 1 de novembro de 2009

Fernando Pessoa/Ricardo Reis - Ode

Não só quem nos odeia ou nos inveja
Nos limita e oprime; quem nos ama
Não menos nos limita.
Que os deuses me concedam que, despido
De afectos, tenha a fria liberdade
Dos píncaros sem nada.
Quem quer pouco, tem tudo; quem quer nada
É livre; quem não tem, e não deseja,
Homem é igual aos deuses.
(1930)
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Imagem: F. Pessoa por Almada Negreiros