sexta-feira, 27 de maio de 2011

José de Almada Negreiros - Reconhecimento à loucura

Já alguém sentiu a loucura
vestir de repente o nosso corpo?
Já.
E tomar a forma dos objectos?
Sim.
E acender relâmpagos no pensamento?
Também.
E às vezes parecer ser o fim?
Exactamente.
Como o cavalo do soneto de Ângelo de Lima?
Tal e qual.
E depois mostrar-nos o que há-de vir
muito melhor do que está?
E dar-nos a cheirar uma cor
que nos faz seguir viagem
sem paragem
nem resignação?
E sentirmo-nos empurrados pelos rins
na aula de descer abismos
e fazer dos abismos descidas de recreio
e covas de encher novidade?
E de uns fazer gigantes
e de outros alienados?
E fazer frente ao impossível
atrevidamente
e ganhar-lhe, e ganhar-lhe
a ponto do impossível ficar possível?
E quando tudo parece perfeito
poder-se ir ainda mais além?
E isto de desencantar vidas
aos que julgam que a vida é só uma?
E isto de haver sempre ainda mais uma maneira pra tudo?

Tu só, loucura, és capaz de transformar o mundo
tantas vezes quantas sejam as necessárias para olhos individuais.
Só tu és capaz de fazer que tenham razão
tantas razões que hão-de viver juntas.
Tudo, excepto tu, é rotina peganhenta.
Só tu tens asas para dar
a quem tas vier buscar.

Em José de Almada Negreiros, Poemas, Assírio & Alvim, 2001, p. 156/7

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Rainer Maria Rilke - Infância


Passa lento o tempo da escola e a sua angústia
com esperas, com infinitas e monótonas matérias.
Oh solidão, oh perda de tempo tão pesada...
E então, à saída, as ruas cintilam e ressoam
e nas praças as fontes jorram,
e nos jardins é tão vasto o mundo —.
E atravessar tudo isto em calções,
diferente de como os outros vão e foram —:
Oh tempo estranho, oh perda de tempo,
oh solidão.

E olhar tudo isto à distância:
homens e mulheres; homens, homens, mulheres
e crianças, tão diferentes e coloridas —;
e então uma casa, e de vez em quando um cão
e o medo surdo trocando-se pela confiança:
Oh tristeza sem sentido, oh sonho, oh medo,
Oh infindável abismo.

E então jogar: à bola e ao arco,
num jardim que manso se desvanece
e por vezes tropeçar nos crescidos,
cego e embrutecido na pressa de correr e agarrar,
mas ao entardecer, com pequenos passos tímidos,
voltar silencioso a casa, a mão agarrada com força —:
Oh compreensão cada vez mais fugaz,
Oh angústia, oh fardo!

E longas horas, junto ao grande tanque cinzento,
ajoelhar-se com um barquinho à vela;
esquecê-lo, porque com iguais
e mais lindas velas outros ainda percorrem os círculos,
e ter de pensar no pequeno rosto
pálido que no tanque parecia afogar-se — :
oh infância, oh fugazes semelhanças.
Para onde? Para onde?

Rainer Maria Rilke

Em  "O Livro das Imagens", tradução de Maria João Costa Pereira

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Luís de Camões - "Coitado! que em um tempo choro e rio"

Coitado! que em um tempo choro e rio;
Espero e temo, quero e aborreço;
Juntamente me alegro e entristeço;
De uma cousa confio e desconfio.

Voo sem asas; estou cego e guio;
E no que valho mais menos mereço;
Calo e dou vozes, falo e emudeço;
Nada me contradiz, e eu aporfio.

Qu'ria, se ser pudesse, o impossível;
Qu'ria poder mudar-me, e estar quedo;
Usar de liberdade, e ser cativo;

Qu'ria que visto fosse, e invisível;
Qu'ria desenredar-me, e mais me enredo:
Tais os extremos em que triste vivo!

Luís Vaz de Camões, Sonetos e Canções, Porto Editora, 1974

(5 de Maio, Dia da Língua Portuguesa, programação disponível no Instituto Camões)