quarta-feira, 28 de outubro de 2009

"Minha pátria é a língua portuguesa" - contexto desta frase de Fernando Pessoa / Bernardo Soares

"Minha pátria é a língua portuguesa" é daquelas frases de Fernando Pessoa/Bernardo Soares que nos habituámos a ouvir por tudo e por nada, e em que muitos a interpretam e usam como um sinal do patriotismo de Pessoa, no sentido corrente deste termo, como amor incondicional a Portugal, quando, lida no seu contexto, a frase quer dizer apenas e só aquilo que diz, que a pátria de Fernando Pessoa/Bernardo Soares é a língua portuguesa! Portugal podia ser invadido ou tomado, desde que não o incomodassem! Mas uma página mal escrita é que ele não suportava!
Senão vejamos este excerto do Livro do Desassossego, texto 259:
(...) «Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon, como o escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.
Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa, vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-ma do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha.»
Posto isto, convirá ter em consideração duas afirmações de Fernando Pessoa (ortónimo), uma que está contida numa carta de 1932 dirigida a João Gaspar Simões, e em que diz que «Bernardo Soares não é um heterónimo mas uma personalidade literária», e outra contida numa carta dirigida a Adolfo Casais Monteiro em 1935, em que diz que «[Bernardo Soares] é um semi-heterónimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu, menos o raciocínio e a afectividade.»
Com este esclarecimento, podemos até dizer que seria mais correcto atribuir sempre a frase «minha pátria é a língua portuguesa» a Bernardo Soares, dada a distinção que o próprio Pessoa faz das respectivas personalidades nestas duas componentes, o raciocínio e a afectividade, que Bernardo Soares não tem como F. Pessoa, pois naquele predominam a emoção e a sensibilidade, a interioridade e os seus estados de alma, o fechamento ao exterior que, de certo modo, o agride.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Esse blog é VIP

O Carlos Santos do blogue O Valor das Ideias e a Ana Paula do blogue Catharsis distinguiram o Direito e Avesso com o selo "esse blog é VIP - just perfect!", que muito agradeço e é também uma honra considerarem que "your blog is just perfect to learn something every day", e que vai direitinho para o blogue Dias Imperfeitos da Analima.

Antero do Quental - A um crucifixo (soneto)

Não se perdeu teu sangue generoso,
Nem padeceste em vão, quem quer que foste,
Plebeu antigo, que amarrado ao poste
Morreste como vil e faccioso.
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Desse sangue maldito e ignominioso
Surgiu armada uma invencível hoste...
Paz aos homens e guerra aos deuses! - pôs-te
Em vão sobre um altar o vulgo ocioso...
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Do pobre que protesta foste a imagem:
Um povo em ti começa, um homem novo:
De ti data essa trágica linhagem.
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Por isso nós, a Plebe, ao pensar nisto,
Lembraremos, herdeiros desse povo,
Que entre nossos avós se conta Cristo.
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Antero de Quental (1842-1891)
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(na imagem: quadro de Salvador Dáli)

domingo, 18 de outubro de 2009

Alberto Caeiro/Fernando Pessoa - poema

Há metafísica bastante em não pensar em nada.
O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.
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Que ideia tenho eu das coisas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?
Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).
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O mistério das coisas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas coisas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
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A luz do sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.
Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber o que não sabem?
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"Constituição íntima das coisas"...
"Sentido íntimo do Universo"...
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em coisas dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.
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Pensar no sentido íntimo das coisas
É acrescentado, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.
O único sentido íntimo das coisas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.
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Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!
(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as coisas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina).
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Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.
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Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.
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E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?),
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.
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QUINTO POEMA de «O GUARDADOR DE REBANHOS», Fernando Pessoa/Alberto Caeiro, 1914

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

87.º aniversário de Agustina Bessa-Luís

«Quando acontece vir ao mundo numa tarde de domingo, tendo a tempestade desabado sobre os lugares fazendo as árvores dobrar-se até ao chão, o melhor que temos a fazer é gritar de terror. Foi o que se deu com Luís Matias do Barral, homenzinho com cinquenta e dois centímetros de comprimento e com pulmões verdadeiramente prometedores, posto que descendia duma família de oradores. O pai brindou com um velho Porto cor de ferrugem, e teve a secreta vontade de que a parteira o fizesse beber um pouco da água do banho para o tornar inteligente.»
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Este é o primeiro parágrafo do romance Ordens Menores, publicado em 1992, menos conhecido do que A Sibila, de 1953, e do qual publiquei aqui, a 17 de Agosto, os últimos parágrafos, também como homenagem a Agustina Bessa-Luís.
De outras homenagens que se vão prestar amanhã a Agustina, dia do seu aniversário de nascimento, destaco:
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No CCB
Entre as 15,00h e as 20,00h, a exposição Agustina Bessa-Luís: Vida e Obra, promovida pelo Instituto Camões, com apoio da Guimarães Editores, e concepção de Inês Pedrosa e João Botelho.
Entre as 15,00h e as 17,00h, na sala Almada Negreiros, com entrada livre, leitura de excertos de alguns dos seus livros, por Maria João Seixas, Pedro Mexia, António Mega Ferreira e Leonor Silveira.
Às 17,15h, projecção do filme A Corte do Norte, com introdução de João Botelho, filme que tem a duração de 120 minutos e é para maiores de 16 anos.
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Às 18,30h, evocação de Agustina por José Saramago.
PARABÉNS AGUSTINA!

sábado, 10 de outubro de 2009

Marguerite Yourcenar - Animais para casacos de peles

(...)
«Se escrevo no entanto estas linhas é porque imagino, não sei se com razão, que um livro escrito por mulheres será lido por mulheres, e é a elas que este meu protesto se dirige. Quando me acontece, na sala de espera de um dentista ou de um médico, folhear uma revista feminina, sobretudo as mais luxuosas, em papel couché, passo rapidamente à frente tentando não ver, como se de fotografias pornográficas se tratasse, aqueles anúncios de página inteira em que se utilizam todas as técnicas de sedução que a cor proporciona. Aquelas onde se pavoneiam criaturas femininas dentro de sumptuosos casacos de peles. Estas jovens que qualquer olhar vê a escorrer sangue, ostentam os despojos de criaturas que respiraram, comeram, dormiram, se acasalaram em jogos de amor, amaram os filhos, por vezes a ponto de morrer por eles, e que, como disse Villon, «morreram de dor», quer dizer com dor, como nós morreremos, mas elas mortas por selvajaria nossa.
O que é pior é que muitas dessas peles vêm de bichos cuja raça, milhares de anos mais velha que a nossa, está em vias de extinção se nada fizermos para o evitar, e ainda antes que essas amáveis raparigas comecem a ter rugas na cara. Em menos de uma geração, a matéria-prima desses "artigos de standing", como se diz mas não deveria dizer-se, será não só "inencontrável" ou "inacessível", não existirá pura e simplesmente. A todos nós que dedicamos esforços e dinheiro (embora nunca o suficiente, quer de uns quer de outros) para tentar salvar a diversidade e a beleza do mundo, esses massacres repugnam. Não ignoro que essas raparigas são manequins, que se enfeitam destes escalpes porque é o seu ofício, como outras vezes se adornam com um soutien ou umas calcinhas chamadas biquini em honra de uma explosão atómica (mais uma agradável associação de ideias). Estas inocentes que fazem o seu trabalho (mas que sem dúvida não desdenhariam possuir aqueles casacos), nem por isso representam menos uma legião de mulheres, as que sonham com esse luxo inacessível ou as que, possuindo-o, o exibem como prova de fortuna e de estatuto social, de êxito sexual ou de carreira ou ainda como um acessório que as faz sentir mais seguras da sua beleza e do seu charme.
Tiremos a essas senhoras o seu último trapo-desculpa. Hoje em dia, vivam elas em Paris ou na Gronelândia, não precisam dessas peles para se aquecer. Muito boa lã e boa fibra abundam por aí para conservar e irradiar o calor para que elas não se vejam obrigadas a transformar-se em animais felpudos, como terá sido o caso na Pré-História.
Estou a atacar as mulheres, mas os caçadores são homens e os peleiros também. O homem que se orgulha de entrar num restaurante com uma mulher envolta em pêlos de animal eriçados será um homem muito típico mas não necessariamente um Homo sapiens. Neste domínio, como em tantos outros, os sexos equivalem-se.» (1976)
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in "O Tempo esse grande escultor"

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Gilia Gerling


Hoje vou abrir uma excepção e dar a conhecer uma seguidora recente deste blogue, Gilia Gerling, a quem, depois de ver os seus vários blogues com as suas actividades, no campo das artes, das letras e da música, aliás é também maestrina, pedi autorização para publicar este seu trabalho (em baixo), e que acabei de receber por correio electrónico.
Mas, além do que referi acima, e que todos poderão apreciar através do BLOGilia que tem as ligações para todos os outros desta autora, disse-me também, nesta sua mensagem, que, aos 57 anos de idade se tinha dado ao luxo de voltar ao mundo académico, agora como aluna, para estudar Filosofia, disciplina por que sempre teve paixão, embora se tenha formado em Música e Teologia e tenha feito um mestrado na área da saúde mental, e, claro, esta informação sobre o estudo de Filosofia fez com que a minha admiração pela Gilia aumentasse um pouco mais.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

José Saramago na Feira do Livro de Frankfurt

Na Feira do Livro de Frankfurt deste ano, que decorrerá entre os dias 14 e 18 de Outubro, a Editorial Caminho lançará o novo livro de José Saramago, com o título Caim, que tem como personagens principais Caim, Deus e a Humanidade "nas suas diferentes expressões", segundo palavras de Pilar del Río, mulher do escritor e Presidente da Fundação José Saramago. No final do mês, este livro estará também disponível nas nossas livrarias.
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Dias de chuva

Os dias cinzentos de chuva empurram-me ainda mais para dentro de mim mesma, sentindo-me enjaulada, quase sufocada. Olho os livros que tenho sobre a mesa e vejo que, nem aqui, nem na minha biblioteca, tenho qualquer tipo de "literatura light", que, porventura, me fizesse abstrair desta espécie de peso que sinto no peito em dias assim. Os livros que tenho à mão são precisamente os das minhas almas gémeas, que sentem como eu e sofrem como eu. Por isso chove lá fora e cá dentro.

domingo, 4 de outubro de 2009

Fernando Pessoa/Bernardo Soares (do Livro do Desassossego)

6.
Pedi tão pouco à vida e esse mesmo pouco a vida me negou. Uma réstia de parte do sol, um campo próximo, um bocado de sossego com um bocado de pão, não me pesar muito o conhecer que existo, e não exigir nada dos outros nem exigirem eles nada de mim. Isso mesmo me foi negado, como quem nega a esmola não por falta de boa alma, mas para não ter que desabotoar o casaco.
Escrevo, triste, no meu quarto quieto, sozinho como sempre tenho sido, sozinho como sempre serei. E penso se a minha voz, aparentemente tão pouca coisa, não encarna a substância de milhares de vozes, a fome de dizerem-se de milhares de vidas, a paciência de milhões de almas submissas como a minha ao destino quotidiano, ao sonho inútil, à esperança sem vestígios. Nestes momentos meu coração pulsa mais alto por minha consciência dele. Vivo mais porque vivo maior. Sinto na minha pessoa uma força religiosa, uma espécie de oração, uma semelhança de clamor. Mas a reacção contra mim desce-me da inteligência... Vejo-me no quarto andar alto da Rua dos Douradores, assisto-me com sono; olho, sobre o papel meio escrito, a vida vã sem beleza e o cigarro barato que a expender estendo sobre o mata-borrão velho. Aqui eu, neste quarto andar, a interpelar a vida!, a dizer o que as almas sentem!, a fazer prosa como os génios e os célebres! Aqui, eu, assim!...
9.
Ah, compreendo! O patrão Vasques é a Vida. A Vida, monótona e necessária, mandante e desconhecida. Este homem banal representa a banalidade da Vida. Ele é tudo para mim, por fora, porque a Vida é tudo para mim por fora.
E, se o escritório da Rua dos Douradores representa para mim a vida, este meu segundo andar, onde moro, na mesma Rua dos Douradores, representa para mim a Arte. Sim, a Arte, que mora na mesma rua que a Vida, porém num lugar diferente, a Arte que alivia da vida sem aliviar de viver, que é tão monótona como a mesma vida, mas só em lugar diferente. Sim, esta Rua dos Douradores compreende para mim todo o sentido das coisas, a solução de todos os enigmas, salvo o existirem enigmas, que é o que não pode ter solução.
22.
A minha imagem, tal qual eu a via nos espelhos, anda sempre ao colo da minha alma. Eu não podia ser senão curvo e débil como sou, mesmo nos meus pensamentos.
Tudo em mim é de um príncipe de cromo colado no álbum velho de uma criancinha que morreu sempre há muito tempo.
Amar-me é ter pena de mim. Um dia, lá para o fim do futuro, alguém escreverá sobre mim um poema, e talvez só então eu comece a reinar no meu Reino.
Deus é o existirmos e isto não ser tudo.
23.
ABSURDO
Tornarmo-nos esfinges, ainda que falsas, até chegarmos ao ponto de já não sabermos quem somos. Porque, de resto, nós o que somos é esfinges falsas e não sabemos o que somos realmente. O único modo de estarmos de acordo com a vida é estarmos em desacordo com nós próprios. O absurdo é o divino.
Estabelecer teorias, pensando-as paciente e honestamente, só para depois agirmos contra elas - agirmos e justificar as nossas acções com teorias que as condenam. Talhar um caminho na vida, e em seguida agir contrariamente a seguir por esse caminho. Ter todos os gestos e todas as atitudes de qualquer coisa que nem somos, nem pretendemos ser, nem pretendemos ser tomados como sendo.
Comprar livros para não os ler; ir a concertos nem para ouvir a música nem para ver quem lá está; dar longos passeios por estar farto de andar e ir passar dias no campo só porque o campo nos aborrece.
27.
A literatura, que é a arte casada com o pensamento e a realização sem a mácula da realidade, parece-me ser o fim para que deveria tender todo o esforço humano, se fosse verdadeiramente humano, e não uma superfluidade do animal. Creio que dizer uma coisa é conservar-lhe a virtude e tirar-lhe o terror. Os campos são mais verdes no dizer-se do que no seu verdor. As flores se forem descritas com frases que as definam no ar da imaginação, terão cores de uma permanência que a vida celular não permite.
Mover-se é viver, dizer-se é sobreviver. Não há nada de real na vida que o não seja porque se descreveu bem. Os críticos da casa pequena soem apontar que tal poema, longamente ritmado, não quer, afinal, dizer senão que o dia está bom. Mas dizer que o dia está bom é difícil, e o dia bom, ele mesmo, passa. Temos pois que conservar o dia bom em uma memória florida e prolixa, e assim constelar de novas flores ou de novos astros as campos ou os céus da exterioridade vazia e passageira.
Tudo é o que somos, e tudo será, para os que nos seguirem na diversidade do tempo, conforme nós intensamente o houvermos imaginado, isto é, o houvermos, com a imaginação metida no corpo, verdadeiramente sido. Não creio que a história seja mais, em seu grande panorama desbotado, que um decurso de interpretações, um consenso confuso de testemunhos distraídos. O romancista é todos nós, e narramos quando vemos, porque ver é complexo como tudo.
Tenho neste momento tantos pensamentos fundamentais, tantas coisas verdadeiramente metafísicas que dizer, que me canso de repente, e decido não escrever mais, não pensar mais, mas deixar que a febre de dizer me dê sono, e eu faça festas com os olhos fechados, como a um gato, a tudo quanto poderia ter dito.
31.
(...)
Durmo e desdurmo.
Do outro lado de mim, lá para trás de onde jazo, o silêncio da casa toca no infinito. Oiço cair o tempo, gota a gota, e nenhuma gota que cai se ouve cair. Oprime-me fisicamente o coração físico a memória, reduzida a nada, de tudo quanto foi ou fui. Sinto a cabeça materialmente colocada na almofada em que a tenho fazendo vale. A pele da fronha tem com a minha pele um contacto de gente na sombra. A própria orelha, sobre a qual me encosto, grava-se-me matematicamente contra o cérebro. Pestanejo de cansaço, e as minhas pestanas fazem um som pequeníssimo, inaudível, na brancura sensível da almofada erguida. Respiro, suspirando, e a minha respiração acontece - não é minha. Sofro sem sentir nem pensar. O relógio da casa, lugar certo lá ao fundo das coisas, soa a meia hora seca e nula. Tudo é tanto, tudo é tão fundo, tudo é tão negro e tão frio!
Passo tempos, passo silêncios, mundos sem forma passam por mim.
Subitamente, como uma criança do Mistério, um galo canta sem saber da noite. Posso dormir, porque é manhã em mim. E sinto a minha boca sorrir, deslocando levemente as pregas moles da fronha que me prende o rosto. Posso deixar-me à vida, posso dormir, posso ignorar-me... E, através do sono novo que me escurece, ou lembro o galo que cantou, ou é ele, de veras, que canta segunda vez.
38.
Invejo a todas as pessoas o não serem eu. Como de todos os impossíveis, esse sempre me pareceu o maior de todos, foi o que mais se constituiu minha ânsia quotidiana, o meu desespero de todas as horas tristes.(...)
39.
De repente, como se um destino médico me houvesse operado de uma cegueira antiga com grandes resultados súbitos, ergo a cabeça, da minha vida anónima, para o conhecimento claro de como existo. E vejo que tudo quanto tenho feito, tudo quanto tenho pensado, tudo quanto tenho sido, é uma espécie de engano e de loucura. Maravilho-me do que consegui não ver. Estranho quanto fui e que vejo que afinal não sou.
Olho, como numa extensão ao sol que rompe nuvens, a minha vida passada; e noto, com um pasmo metafísico, como todos os meus gestos mais certos, as minhas ideias mais claras, e os meus propósitos mais lógicos, não foram, afinal, mais que bebedeira nata, loucura natural, grande desconhecimento. Nem sequer representei. Representaram-me. Fui, não o actor, mas os gestos dele. (...)
40.
Sinto-me às vezes tocado, não sei porquê, de um prenúncio de morte... Ou seja, uma vaga doença, que se não materializa em dor e por isso tende a espiritualiza-se em fim, ou seja, um cansaço que quer um sono tão profundo que o dormir lhe não basta - o certo é que sinto como se, no fim de um piorar de doente, por fim largasse sem violência ou saudade as mãos débeis de sobre a colcha sentida.
Considero então que coisa é esta a que chamamos morte. Não quero dizer o mistério da morte, que não penetro, mas a sensação física de cessar de viver. A humanidade tem medo da morte, mas incertamente; o homem normal bate-se bem em exercício, o homem normal, doente ou velho, raras vezes olha com horror o abismo do nada que ele atribui a esse abismo. Tudo isso é falta de imaginação. Mem há nada menos de quem pensa que supor a morte um sono. Por que o há-de ser se a morte se não assemelha ao sono? O essencial do sono é o acordar-se dele, e da morte, supomos, não se acorda. E se a morte se assemelha ao sono, deveremos ter a noção de que se acorda dela. Não é isso, porém, o que o homem normal se figura: figura para si a morte como um sono de que não se acorda, o que nada quer dizer. A morte, disse, não se assemelha ao sono, pois no sono se está vivo e dormindo; nem sei como pode alguém assemelhar a morte a qualquer coisa, pois não pode ter experiência dela, ou coisa com que a comparar.
A mim, quando vejo um morto, a morte parece-me uma partida. O cadáver dá-me a impressão de um trajo que se deixou. Alguém se foi embora e não precisou de levar aquele fato único que vestira.
42.
Não compreendo senão como uma espécie de falta de asseio esta inerte permanência em que jazo da minha mesma e igual vida, ficada como pó ou porcaria na superfície de nunca mudar.
Assim como lavamos o corpo deveríamos lavar o destino, mudar de vida como mudamos de roupa - não para salvar a vida, como comemos e dormimos, mas por aquele respeito alheio por nós mesmos, a que propriamente chamamos asseio.
Há muitos em quem o desasseio não é uma disposição da vontade, mas um encolher de ombros da inteligência. E há muitos em quem o apagado e o mesmo da vida não é uma forma de a quererem, ou uma natural conformação com o não tê-la querido, mas um apagamento da inteligência de si mesmos, uma ironia automática do conhecimento.
Há porcos que repugnam a sua porcaria, mas se não afastam dela, por aquele mesmo extremo de um sentimento, pelo qual o apavorado se não afasta do perigo. Há porcos de destino, como eu, que se não afastam da banalidade quotidiana por essa mesma atracção da própria impotência. São aves fascinadas pela ausência de serpente; moscas que pairam nos troncos sem ver nada, até chegarem ao alcance viscoso da língua do camaleão.
Assim passeio lentamente a minha inconsciência consciente, no meu tronco de árvore do usual. Assim passeio o meu destino que anda, pois eu não ando; o meu tempo que segue, pois eu não sigo. Nem me salva da monotonia senão estes breves comentários que faço a propósito dela. Contento-me com a minha cela ter vidraças por dentro das grades, e escrevo nos vidros, no pó do necessário, o meu nome em letras grandes, assinatura quotidiana da minha escritura com a morte.
Com a morte? Não, nem com a morte. Quem vive como eu não morre: acaba, murcha, desvegeta-se. O lugar onde esteve fica sem ele ali estar, a rua por onde andava fica sem ele lá ser visto, a casa onde morava é habitada por não-ele. É tudo e chamamos-lhe o nada; mas nem essa tragédia da negação podemos representar com aplauso, pois nem ao certo sabemos se é nada, vegetais da verdade como a vida, pó que tanto está por dentro como por fora das vidraças, netos do Destino e enteados de Deus, que casou com a Noite Eterna quando ela enviuvou do Caos que nos procriou. (...)
43.
Há um cansaço da inteligência abstracta, e é o mais horroroso dos cansaços. Não pesa como o cansaço do corpo, nem inquieta como o cansaço do conhecimento pela emoção. É um peso da consciência do mundo, um não poder respirar com a alma.
Então, como se o vento nelas desse, e fossem nuvens, todas as ideias em que temos sentido a vida, todas as ambições e desígnios em que temos fundado a esperança na continuação dela, se rasgam, se abrem, se afastam tornadas cinzas de nevoeiros, farrapos do que não foi nem poderia ser. E por detrás da derrota surge pura a solidão negra e implacável do céu deserto e estrelado.
O mistério da vida dói-nos e apavora-nos de muitos modos. Umas vezes vem sobre nós como um fantasma sem forma, e a alma treme com o pior dos medos - a da incarnação disforme do não-ser. Outras vezes está atrás de nós, visível só quando nos não voltamos para ver, e é a verdade toda no seu horror profundíssimo de a desconhecermos.
Mas este horror que hoje me anula é menos nobre e mais roedor. É uma vontade de não querer ter pensamento, um desejo de nunca ter sido nada, um desespero consciente de todas as células do corpo e da alma. É o sentimento súbito de se estar enclausurado na cela infinita. Para onde pensar em fugir, se só a cela é tudo?
E então vem-me o desejo transbordante, absurdo, de uma espécie de satanismo que precedeu Satã, de que um dia - um dia sem tempo nem substância - se encontre uma fuga para fora de Deus e o mais profundo de nós deixe, não sei como, de fazer parte do ser ou do não-ser.