sábado, 30 de janeiro de 2010

Fernando Pessoa/Alberto Caeiro - "A espantosa realidade das coisas"

A espantosa realidade das coisas
É a minha descoberta de todos os dias.
Cada coisa é o que é,
E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra,
E quanto isso me basta.
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Basta existir para se ser completo.
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Tenho escrito bastantes poemas.
Hei-de escrever muitos mais. Naturalmente.
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Cada poema meu diz isto,
E todos os meus poemas são diferentes,
Porque cada coisa que há é uma maneira de dizer isto.
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Às vezes ponho-me a olhar para uma pedra.
Não me ponho a pensar se ela sente.
Não me perco a chamar-lhe minha irmã.
Mas gosto dela por ela ser uma pedra,
Gosto dela porque ela não sente nada.
Gosto dela porque ela não tem parentesco nenhum comigo.
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Outras vezes oiço passar o vento,
E acho que só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido.
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Eu não sei o que é que os outros pensarão lendo isto;
Mas acho que isto deve estar bem porque o penso sem estorvo,
Nem ideia de outras pessoas a ouvir-me pensar;
Porque o penso sem pensamentos
Porque o digo como as minhas palavras o dizem.
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Uma vez chamaram-me poeta materialista,
E eu admirei-me, porque não julgava
Que se me pudesse chamar qualquer coisa.
Eu nem sequer sou poeta: vejo.
Se o que escrevo tem valor, não sou eu que o tenho:
O valor está ali, nos meus versos.
Tudo isso é absolutamente independente da minha vontade.
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de Poemas Inconjuntos/Alberto Caeiro

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Fernando Pessoa/Ricardo Reis - "Quanta tristeza e amargura" e "Cada dia sem gozo não foi teu"

Quanta tristeza e amargura
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Quanta tristeza e amargura afoga
Em confusão a 'streita vida!
Quanto Infortúnio mesquinho
Nos oprime supremo!
Feliz ou o bruto que nos verdes campos
Pasce, para si mesmo anónimo, e entra
Na morte como em casa;
Ou o sábio que, perdido
Na ciência, a fútil vida austera eleva
Além da nossa, como o fumo que ergue
Braços que se desfazem
A um céu inexistente.
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Cada dia sem gozo não foi teu
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Cada dia sem gozo não foi teu
Foi só durares nele. Quanto vivas
Sem que o gozes, não vives.
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Não pesa que amas, bebas ou sorrias:
Basta o reflexo do sol na água
De um charco, se te é grato.
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Feliz o a quem, por ter em coisas mínimas
Seu prazer posto, nenhum dia nega
A natural ventura!
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Odes/Ricardo Reis

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Fernando Pessoa/Ricardo Reis - "Da verdade não quero mais que a vida"

Sob a leve tutela
De deuses descuidosos,
Quero gastar as concedidas horas
Desta fadada vida.
Nada podendo contra
O ser que me fizeram,
Desejo ao menos que me haja o Fado
Dado a paz por destino.
Da verdade não quero
Mais que a vida; que os deuses
Dão vida e não verdade, nem talvez
Saibam qual a verdade.
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Odes/Ricardo Reis
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(Destinatária especial: Fada Helena)

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Eugénio de Andrade - "A poesia não vai" (aniversário de nascimento do poeta)

A poesia não vai à missa,
não obedece ao sino da paróquia,
prefere atiçar os seus cães
às pernas de deus e dos cobradores
de impostos.
Língua de fogo do não,
caminho estreito
e surdo da abdicação, a poesia
é uma espécie de animal
no escuro recusando a mão
que o chama.
Animal solitário, às vezes
irónico, às vezes amável,
quase sempre paciente e sem piedade.
A poesia adora
andar descalça nas areias do Verão.
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Eugénio de Andrade
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Ainda bem que "a poesia adora andar descalça nas areias do Verão", porque hoje, dia em que o poeta completaria 87 anos se fosse vivo, continua a ser analisado pela presidência do Conselho de Ministros o pedido de extinção da Fundação Eugénio de Andrade, feito pelo conselho directivo da mesma e devido a dificuldades financeiras.
Mas como ainda não foi extinta, a Fundação Eugénio de Andrade organizou para hoje, às 18.30h, na sua sede no Porto, Rua do Passeio Alegre, um debate sobre poesia portuguesa, com intervenções iniciais de Rosa Alice Branco e Rui Lage. A entrada é livre.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Fernando Pessoa/Álvaro de Campos - "Começo a conhecer-me. Não existo."

Começo a conhecer-me. Não existo.
Sou o intervalo entre o que desejo ser e os outros me fizeram, ou metade desse intervalo, porque também há vida...
Sou isso, enfim...
Apague a luz, feche a porta e deixe de ter barulhos de chinelos no corredor.
Fique eu no quarto só com o grande sossego de mim mesmo.
É um universo barato.
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de Poemas/Álvaro de Campos

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Esboço de quadra popular, com destinatário


Para o Eduardo, com carinho


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Não tenho o dom de Aleixo
e continuo a tiritar
pr'a deixar de bater o queixo
o "chegateaqui" tenho de visitar

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Natália Correia - "Verdadeira litania para os tempos da revolução"


Burgueses somos nós todos

ó literatos

burgueses somos nós todos

ratos e gatos

Mário Cesariny

Mário nós não somos todos burgueses

os gatos e os ratos se quiseres,

os literatos esses são franceses

e todos soletramos malmequeres.

Da vida o verbo intransitivo

não é burguês é ruim;

e eu que nas nuvens vivo

nuvens! O que direi de mim?

Burguês é esse menino extraordinário

que nasce todos os anos em Belém

e a poesia se não diz isto Mário

é burguesa também.

Burguês é o carro funerário.

Os mortos são naturalmente comunistas.

Nós não somos burgueses Mário

o que nós somos todos é sebastianistas.

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de Poesia Completa, D. Quixote, 1999

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Fernando Pessoa/Alberto Caeiro - "A guerra que aflige com os seus esquadrões"

A guerra que aflige com os seus esquadrões o Mundo,
É o tipo perfeito do erro da filosofia.
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A guerra, como tudo humano, quer alterar.
Mas a guerra, mais do que tudo, quer alterar e alterar muito
E alterar depressa.
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Mas a guerra inflige a morte.
E a morte é o desprezo do Universo por nós.
Tendo por consequência a morte, a guerra prova que é falsa.
Sendo falsa, prova que é falso todo o querer-alterar.
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Deixemos o Universo exterior e os outros homens onde a Natureza os pôs.
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Tudo é orgulho e inconsciência.
Tudo é querer mexer-se, fazer coisas, deixar rasto.
Para o coração e o comandante dos esquadrões
Regressa aos bocados o Universo exterior.
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A química directa da Natureza
Não deixa lugar vago para o pensamento.
A humanidade é uma revolta de escravos.
A humanidade é um governo usurpado pelo povo.
Existe porque usurpou, mas erra porque usurpar é não ter direito.
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Deixai existir o mundo exterior e a humanidade natural!
Paz a todas as coisas pré-humanas, mesmo no homem,
Paz à essência inteiramente exterior do Universo!
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de Poemas Inconjuntos/Alberto Caeiro