domingo, 13 de dezembro de 2009

Fernando Pessoa/Álvaro de Campos - "Esta velha angústia"

Esta velha angústia,
Esta angústia que trago há séculos em mim,
Transbordou da vasilha,
Em lágrimas, em grandes imaginações,
Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror,
Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum.
.
Transbordou.
Mal sei como conduzir-me na vida
Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!
Se ao menos endoidecesse deveras!
Mas não: é este estar entre,
Este quase,
Este poder ser que...,
Isto.
.
Um internado num manicómio é, ao menos, alguém,
Eu sou um internado num manicómio sem manicómio.
Estou doido a frio,
Estou lúcido e louco,
Estou alheio a tudo e igual a todos:
Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura
Porque não são sonhos.
Estou assim...
.
Pobre velha casa da minha infância perdida!
Quem te diria que eu me desacolhesse tanto!
Que é do teu menino? Está maluco.
Que é de quem dormia sossegado sob o teu tecto provinciano?
Está maluco.
Quem de quem fui? Está maluco. Hoje é quem eu sou.
.
Se ao menos eu tivesse uma religião qualquer!
Por exemplo, por aquele manipanso
Que havia em casa, lá nessa, trazido de África.
Era feiíssimo, era grotesco,
Mas havia nele a divindade de tudo em que se crê.
Se eu pudesse crer num manipanso qualquer -
Júpiter, Jeová, a Humanidade -
Qualquer serviria,
Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo?
.
Estala, coração de vidro pintado!
.
(de Poemas/Álvaro de Campos)

8 comentários:

c.a. (n.c.) disse...

De todos os heterónimos, o Álvaro de Campos é o meu preferido, confesso. Não conhecia este poema. Óptima escolha!
Abraço

Maria Josefa Paias disse...

Muito obrigada c.a.
Creio que o meu coração balança entre eles à conta do meu próprio estado de espírito.
Um abraço.

Benjamina disse...

Olá Josefa
Muito bem escolhido mesmo. Ele sentia-se um louco sem manicómio. E nós, não nos sentiremos um pouco assim também? ou será que o mundo lá fora se tornou num manicómio e nós estamos lúcidos e internados?
Não sei...
Beijinhos e obrigada pelo belo poema.

Maria Josefa Paias disse...

Olá Benjamina e obrigada.
Estamos num mundo que parece louco, ou de loucos, em que por vezes nos sentimos também lúcidos e loucos e desamparados.
Beijinhos e boa semana.

Miguel Gomes Coelho disse...

Maria Josefa.
belíssima escolha e actualíssima.
Podia ter sido escrito hoje, o que abona na actualidade da poesia de Pessoa.
E de forma aberta, nada aqui existe de encriptado, dá-nos um bom exemplo de um Pessoa a viver no meio das gentes e a falar disso mesmo.
Um abraço grande.

Maria Josefa Paias disse...

Miguel,
Muito obrigada pelo comentário.
Um abraço.

Lusibero disse...

Mª JOSEFA: a velha angústia de PESSOA/CAMPOS é a velha angústia de cada um de nós:esta chatice de VIDA, que devia ser ,razoavelmente, reconfortante para todos e passou a sê-lo só para os sem escrúpulos"
"...NEM UMA NÓDOA SE VIA /NA VESTE DOS FARISEUS...!( SOPHIA DE MELLO...)
BEIJOS DE BOAS FESTAS DE LUSIBERO

Maria Josefa Paias disse...

Obrigada pelo comentário, Lusibero.
Um beijinho e Boas Festas para si também.