sábado, 10 de abril de 2010

Fernando Pessoa/ Álvaro de Campos - Encostei-me

Encostei-me para trás na cadeira de convés e fechei os olhos,
E o meu destino apareceu-me na alma como precipício.
A minha vida passada misturou-se com a futura,
E houve no meio um ruído do salão de fumo,
Onde, aos meus ouvidos, acabara a partida de xadrez.
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Ah, balouçado
Na sensação das ondas,
Ah, embalado
Na ideia tão confortável de hoje ainda não ser amanhã,
De pelo menos neste momento não ter responsabilidades nenhumas,
De não ter personalidade propriamente, mas sentir-me ali,
Em cima da cadeira como um livro que a sueca ali deixasse.
.
Ah, afundado
Num torpor da imaginação, sem dúvida um pouco sono,
Irrequieto tão sossegadamente,
Tão análogo de repente à criança que fui outrora
Quando brincava na quinta e não sabia álgebra,
Nem as outras álgebras com x e y's de sentimento.
.
Ah, todo eu anseio
Por esse momento sem importância nenhuma
Na minha vida,
Ah, todo eu anseio por esse momento, como por outros análogos -
Aqueles momentos em que não tive importância nenhuma,
Aqueles em que compreendi todo o vácuo da existência sem inteligência para o compreender
E havia luar e mar e a solidão, ó Álvaro.
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Poemas/ Álvaro de Campos

5 comentários:

partilha de silêncios disse...

Lindo poema!

Transportou-me para a minha infância, o que sempre me deixa muito feliz.

Um bom fim de semana.

bjs

Maria Josefa Paias disse...

.
Muito obrigada, "partilha de silêncios", e que bom que lhe trouxe essas recordações boas:))

Beijinho.

Eduardo Miguel Pereira disse...

Maria Josefa, mais um momento alto e que me tocou profunamente.
Quantas e quantas vezes, tenho dado por mim nos ultimos tempos a ansiar por não ter importância nenhuma e a poder viver descontradamente e sem este peso todo em cima.

Maria Josefa Paias disse...

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Amigo Eduardo, sinto nas suas palavras algum desgaste físico e anímico provocado pelas responsabilidades do dia-a-dia.

Não sendo uma caixa de comentários o lugar próprio para aconselhamento, creio que está a precisar de algum tempo e espaço só para si, onde lhe fosse possível esquecer-se de tudo, incluindo de si mesmo, uma espécie de esvaziamento que lhe permitisse encarar de novo as responsabilidades do quotidiano com outra energia.

Obrigada pelo comentário e um grande abraço.

Eduardo Miguel Pereira disse...

É bem verdade Maria Josefa, é bem verdade !