segunda-feira, 21 de março de 2011

Fernando Pessoa, no Dia Mundial da Poesia

Hoje que a tarde é calma e o céu tranquilo,
E a noite chega sem que eu saiba bem,
Quero considerar-me e ver aquilo
Que sou, e o que sou o que é que tem.

Olho por todo o meu passado e vejo
Que fui quem foi aquilo em torno meu,
Salvo o que o vago e incógnito desejo
De ser eu mesmo de meu ser me deu.

Como a páginas já relidas, vergo
Minha atenção sobre quem fui de mim,
E nada de verdade em mim albergo
Salvo uma ânsia sem princípio ou fim.

Como alguém distraído na viagem,
Segui por dois caminhos par a par.
Fui com o mundo, parte da paisagem;
Comigo fui, sem ver nem recordar.

Chegado aqui, onde hoje estou, conheço
Que sou diverso no que informe estou.
No meu próprio caminho me atravesso.
Não conheço quem fui no que hoje sou.

Serei eu, porque nada é impossível,
Vários trazidos de outros mundos, e
No mesmo ponto espacial sensível
Que sou eu, sendo eu por 'star aqui?

Serei eu, porque todo o pensamento
Podendo conceber, bem pode ser
Um dilatado e múrmuro momento,
De tempos-seres de quem sou o viver?

(1931)

in Fernando Pessoa - O Rosto e as Máscaras, Edições Ática, Lisboa, 2.ª ed., 1979, p. 158

Nota: Apesar de alguns poemas não terem título, como este, o que, convenhamos, não é o mais importante, não podia deixar de escolher um de Fernando Pessoa (ortónimo) para assinalar este Dia Mundial da Poesia.

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