quarta-feira, 15 de junho de 2011

José de Almada Negreiros - Encontro

Que vens contar-me
se não sei ouvir senão o silêncio?
Estou parado no mundo.
Só sei escutar de longe
antigamente ou lá pró futuro.
É bem certo que existo:
chegou-me a vez de escutar.

Que queres que te diga
se não sei nada e desaprendo?
A minha paz é ignorar.
Aprendo a não saber:
que a ciência aprenda comigo
já que não soube ensinar.

O meu alimento é o silêncio do mundo
que fica no alto das montanhas
e não desce à cidade
e sobe às nuvens que andam à procura de forma
antes de desaparecer.

Para que queres que te apareça
se me agrada não ter horas a toda a hora?
A preguiça do céu entrou comigo
e prescindo da realidade como ela prescinde de mim.

Para que me lastimas
se este é o meu auge?!
Eu tive a dita de me terem roubado tudo
menos a minha torre de marfim.
Jamais os invasores levaram consigo as nossas torres de marfim.

Levaram-me o orgulho todo
deixaram-me a memória envenenada
e intacta a torre de marfim.
Só não sei que faça da porta da torre
que dá para donde vim.

José de Almada Negreiros (7/04/1893 - 15/06/1970)

Em José de Almada Negreiros, Poemas, Assírio & Alvim, 2001, p. 165/6

2 comentários:

Eduardo Miguel Pereira disse...

Belíssimo !
E que sirva para nunca permitirmos que nos tirem as nossas torres de marfim.

partilha de silêncios disse...

Muito belo !

Tem mais um texto do Alberto Caeiro, no Partilha de Silêncios.

beijinhos