quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Marguerite Yourcenar - Fogos do Solstício

O solstício de Inverno tem por festa o Natal; a Páscoa, no equinócio da Primavera, ocupa por si só o lugar de todas as outras festas do ressurgimento, como as Maias que os jovens e donzelas celebravam na Idade Média a cavalo pelas florestas ou dançando na erva, ou as rogações quase desaparecidas por o homem da nossa época não amar bastante a terra, nem o céu, para atrair sobre aquela as bênçãos deste. O São João, festa do solstício de Verão, viu apagar-se por quase toda a parte as suas fogueiras, salvo talvez nos países escandinavos, onde os lagos reflectem ainda as suas chamas. Mas já ninguém na Sicília fica à espreita na véspera do dia 24 de Junho, para ver uma Salomé nua a dançar ao Sol nascente, levando num prato de ouro, ele próprio uma imagem solar, a cabeça cortada do Precursor.
E decerto o homem do deserto alimentado de mel e de gafanhotos, o profeta queimado pelo reflexo do sol a pique sobre as rochas, o pregador de palavra incandescente, poderia simbolizar no Oriente a estação ardente, e o refrescante contraste da água do Jordão só lhe reforça a intensidade. Mas parece que o elemento de esplendor e de serena claridade, tão ligado nas nossas regiões temporadas à própria ideia de solstício de Junho, faz muita falta a esta história de ascetismo e de sangue. Outras festas cristãs, o Pentecostes, com as suas chamas místicas, o Corpo de Deus, com a sua procissão floral e rústica em torno da custódia, são também festas de Verão; elas nunca foram sentidas como as festas de Verão. A estação que é ela própria uma festa não precisa de falar de uma festa sua.
Pareceria no entanto que os fogos-de-artifício do 14 de Junho em França e a orgia de foguetes e petardos no 4 de Julho americano respondem ao mesmo velho desejo do homem de reproduzir na Terra um grande episódio solar, de aumentar ainda, se possível, o calor e a luz vindos do céu. Não lamentamos demasiado que o velho fogo-de-vista que brilhava de aldeia em aldeia, de monte em monte, ameaçando de incêndios florestas e pastos, se tenha definitivamente extinto, por muito pitorescos que fossem os saltos na fogueira. Os bailes e os arraiais, também eles quase caídos em desuso, tomaram de certo modo o seu lugar, mas já dessacralizados, salvo talvez alguns lampejos de patriotismo motivados apenas na consciência dos que dançam por certas ideias feitas da nossa história. E talvez o enorme e quase aterrador êxodo estival dos nossos dias seja um rito solar que se ignora.
Mas a ideia de uma festa do solstício causa-nos uma estranha vertigem semelhante à do homem que se mantém em equilíbrio numa esfera escorregadia. Esta plena medida de luz, esse dia mais longo do ano, que no cabo Norte dura quase dez semanas, é também o momento em que na Antárctica a noite reina, apenas iluminada pelos fogos longínquos dos astros. Mais ainda, este apogeu marca o começo de uma descida; os dias irão decrescendo até ao nadir do solstício de Inverno; o Inverno astronómico começa em Junho, como o Verão astronómico começa em Dezembro, quando as horas de luz crescem insensivelmente de novo até ao auge que é o São João. Temos diante de nós três meses de prados verdes, de flores, de colheitas, de areia quente nas praias, de cantos nas árvores, mas o movimento do céu prepara já o Inverno, como em pleno Inverno é o Verão que se prepara. Estamos metidos nesta dupla espiral que sobe e desce. «Pára, és tão belo!», poderia dizer Fausto ao solstício de Junho. Seria em vão. É só em nós, e mesmo assim sem grande esperança nem grande fé, que iremos encontrar a estabilidade. (1977)
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in O Tempo esse grande escultor, tradução de Helena Vaz da Silva, Difel, Lisboa, 1984, páginas 110/1

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