quarta-feira, 28 de outubro de 2009

"Minha pátria é a língua portuguesa" - contexto desta frase de Fernando Pessoa / Bernardo Soares

"Minha pátria é a língua portuguesa" é daquelas frases de Fernando Pessoa/Bernardo Soares que nos habituámos a ouvir por tudo e por nada, e em que muitos a interpretam e usam como um sinal do patriotismo de Pessoa, no sentido corrente deste termo, como amor incondicional a Portugal, quando, lida no seu contexto, a frase quer dizer apenas e só aquilo que diz, que a pátria de Fernando Pessoa/Bernardo Soares é a língua portuguesa! Portugal podia ser invadido ou tomado, desde que não o incomodassem! Mas uma página mal escrita é que ele não suportava!
Senão vejamos este excerto do Livro do Desassossego, texto 259:
(...) «Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon, como o escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.
Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa, vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-ma do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha.»
Posto isto, convirá ter em consideração duas afirmações de Fernando Pessoa (ortónimo), uma que está contida numa carta de 1932 dirigida a João Gaspar Simões, e em que diz que «Bernardo Soares não é um heterónimo mas uma personalidade literária», e outra contida numa carta dirigida a Adolfo Casais Monteiro em 1935, em que diz que «[Bernardo Soares] é um semi-heterónimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu, menos o raciocínio e a afectividade.»
Com este esclarecimento, podemos até dizer que seria mais correcto atribuir sempre a frase «minha pátria é a língua portuguesa» a Bernardo Soares, dada a distinção que o próprio Pessoa faz das respectivas personalidades nestas duas componentes, o raciocínio e a afectividade, que Bernardo Soares não tem como F. Pessoa, pois naquele predominam a emoção e a sensibilidade, a interioridade e os seus estados de alma, o fechamento ao exterior que, de certo modo, o agride.

16 comentários:

Manuela Freitas disse...

Olá Josefa,
Gostei deste detalhe importante, sobre a frase em questão. Li o LIVRO DO DESASSOSSEGO, há alguns anos, cada vez me convenço mais, que tenho que voltar a ler certos livros!...
Beijinhos, Manuela

partilha de silêncios disse...

O nosso poeta, peferia rosas !

Assim o dizia, no seu poema "prefiro rosas, meu amor, à pátria"


Prefiro rosas, meu amor, à pátria

Prefiro rosas, meu amor, à pátria,
E antes magnólias amo
Que a glória e a virtude.
Logo que a vida não me canse, deixo
Que a vida por mim passe
Logo que eu fique o mesmo.
Que importa àquele a quem já nada importa
Que um perca e outro vença,
Se a aurora raia sempre,
Se cada ano com a Primavera
As folhas aparecem
E com o Outono cessam?
E o resto, as outras coisas que os humanos
Acrescentam à vida,
Que me aumentam na alma?
Nada, salvo o desejo de indif'rença
E a confiança mole
Na hora fugitiva.

Heterónimo Ricardo Reis
01/06/1916


bjs

analima disse...

Que óptima ideia esta: a de divulgar a contextualização desta frase. Tem toda a razão. A maior parte das vezes associa-se esta afirmação a um patriotismo estreito que, aqui se vê, não estava na mente de quem a escreveu.

Maria Josefa Paias disse...

partilha de silêncios, muito obrigada por me trazer este poema de Ricardo Reis que, de entre os heterónimos de Pessoa, é ao que tenho prestado menos atenção, a não ser a algumas Odes. A maior parte do tempo estou ligada a B. Soares, há dias em que sou toda Álvaro de Campos e outros Alberto Caeiro, e de vez em quando F. Pessoa (ortónimo). Aliás, deste prefiro os textos em prosa, como A Balança de Minerva, O estado mental português, O provincianismo português, etc., e as cartas aos amigos.
Que bela surpresa!
Bjs

Maria Josefa Paias disse...

Manuela,
Ainda bem que gostou desta ida à fonte para desfazer equívocos e, segundo parece, vai fazer o mesmo, recapitulando algumas leituras, e isso é muito bom.
Beijinho

Maria Josefa Paias disse...

Analima,
Muito obrigada pelas considerações.
Vejo tantas vezes pessoas com responsabilidades no tratamento da obra de Pessoa cometerem esse erro, quando deviam ser os primeiros a esclarecê-lo, que achei pertinente mostrar o que diz o próprio autor da frase.
Mas este é o meu feitio. Só me convenço das coisas quando as ouço da boca de quem as disse ou as leio a partir do autor das palavras. O "diz que disse" para mim não serve.
Um abraço.

analima disse...

Eu diria: que bom feitio!

Ana Paula Sena disse...

Gostei imenso deste sábio esclarecimento!

Também não me contento nada com o "diz que disse" :))

Muito obrigada. "Just perfect".
Um beijinho.

partilha de silêncios disse...

Tem no "partilha de silêncios" um post que penso lhe poderá interessar. bjs

Benjamina disse...

Olá Josefa
Adorei o seu texto e aprender por aqui. Sim que eu gosto imenso de Fernando Pessoa, mas sou uma leiga em coisas de literatura.
Mas gosto de apreciar e de aprender.
Beijinhos

Maria Josefa Paias disse...

Ana Paula,
Obrigada pelas suas palavras.
Não sei se deva começar a ficar preocupada por nunca ter discordado de mim, até agora!:)
Um beijinho.

Maria Josefa Paias disse...

partilha de silêncios,
Já fui lê-lo e deixei-lhe um arrazoado daqueles!
Muito obrigada e um beijinho.

Ana Paula Sena disse...

Josefa, eu tenho procurado, mas não consigo discordar de si. :)))

É sempre assim com aqueles que revelam certas qualidades que aprecio. Mas, ainda que não estivesse de acordo, não seria grave, julgo. O mais importante para mim é aprender, e isso continuaria a ser certo, por aqui (também no Restolhando).

Um abraço.

Maria Josefa Paias disse...

Benjamina,
Muito obrigada.
Vi que colocou no seu blogue o nosso Clube e que publicou mais poesia, o que me fez pensar se não estará a fugir à sua "linha editorial", mas não me diga que é leiga em coisas de literatura, porque se o fosse não teria publicado as coisas belíssimas que publicou!
Volto a sublinhar, se na barra lateral a referência ao Clube impedir que lá coloque outros assuntos do seu interesse, saiba que não há qualquer obrigação de o ter ali, aliás é um Clube tão sui generis que nem estatutos tem. O que também faz parte do seu encanto.
Beijinhos.
Josefa

partilha de silêncios disse...

Em resposta ao seu convite para a "partilha de silêncios" ser membro honorário do Clube dos Desassossegados, terei muito gosto.

O que é suposto fazer, para além do desassossego?

bjs

Maria Josefa Paias disse...

partilha de silêncios, não é necessário fazer mais nada do que aquilo que já fez, que foi mostrar interesse e conhecimento sobre a obra de Fernando Pessoa e dos seus heterónimos, e por isso já lá está no lugar de honra.
Claro que contarei sempre com os seus comentários e a indicação de uma ou outra coisa que eu desconheça, como foi o caso daquele poema de Ricardo Reis, que veio recordar-me que ele não escreveu apenas Odes.
Muito obrigada.
Bjs