quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Marguerite Yourcenar - Glosa de Natal

«A estação dos Natais comercializados chegou. Para quase toda a gente - fora os miseráveis, o que faz muitas excepções - é uma paragem quente e clara no Inverno cinzento. Para a maioria dos celebrantes de hoje, a grande festa cristã fica limitada a dois grandes ritos: comprar, de maneira mais ou menos compulsiva, objectos úteis ou não, e empanturrar-se a si e às pessoas da sua intimidade, numa mistura indestrinçável de sentimentos em que entram igualmente a vontade de dar prazer, a ostentação e a necessidade de se divertir. E não esqueçamos os pinheiros, símbolos antiquíssimos que são da perenidade do mundo vegetal, sempre verdes, trazidos da floresta para acabarem morrendo ao calor dos fogões, e os teleféricos despejando esquiadores na neve inviolada.
Embora não sendo nem católica (excepto de nascimento e de tradição), nem protestante (excepto por algumas leituras e influências de alguns grandes exemplos), nem mesmo cristã no sentido pleno do termo, nem por isso me sinto menos levada a celebrar esta festa tão rica de significados e o seu cortejo de festas menores, o São Nicolau e a Santa Lúcia do Norte, a Candelária e os Reis. Mas limitemo-nos ao Natal, esta festa que é de nós todos. Trata-se de um nascimento, de um nascimento como todos deveriam ser, o de uma criança esperada com amor e respeito, trazendo em si a esperança do mundo. Trata-se dos pobres: uma velha balada francesa canta Maria e José procurando timidamente em Belém uma hospedaria para as suas posses, sempre desprezados em favor de clientes mais ricos e reluzentes e por fim insultados por um patrão que "detesta a pobralhada". É a festa dos homens de boa vontade, como dizia uma admirável fórmula que infelizmente já nem se encontra nas versões modernas dos Evangelhos, desde a serva surda-muda dos cantos da Idade Média que ajudou Maria no parto até ao José aquecendo as fraldas do recém-nascido diante de um pequeno fogo, aos pastores cobertos de sebo mas julgados dignos da visita dos anjos. É a festa de uma raça tantas vezes desprezada e perseguida, porque é judeu o recém-nascido do grande mito cristão (falo de mito com respeito, e emprego a palavra no sentido dos etnólogos, significando as grandes verdades que nos ultrapassam e de que precisamos para viver).
É a festa dos animais que participam no mistério sagrado desta noite, maravilhoso símbolo de que São Francisco e alguns outros santos sentiram a importância, mas que os cristãos comuns desprezam, não procurando neles inspiração. É a festa da comunidade humana, porque é, ou será dentro de dias, a dos três Reis cuja lenda quis que um fosse preto, alegoria viva de todas as raças da Terra levando ao Menino a variedade dos seus dons. É a festa da alegria, mas também da dor, pois que a criança hoje adorada será amanhã o Homem das Dores. É enfim a festa da própria Terra, que nos ícones da Europa de Leste vemos tantas vezes prosternada à entrada da gruta onde o Menino nasceu, a mesma Terra que na sua marcha atravessa neste momento o ponto do solstício de Inverno e nos arrasta a todos para a Primavera. Por esta razão, antes que a Igreja tivesse fixado o nascimento de Cristo nesta data, ela era já, nos tempos antigos, a festa do Sol.
Parece que não é mau lembrar estas coisas que toda a gente sabe e que tantos esquecem.» (1976)
in O Tempo esse grande escultor, Difel, Lisboa, 1984, p. 105

8 comentários:

Manuela Araújo disse...

Olá Josefa
Magnífico texto de Yourcenar. Que a época do Natal sirva para lembrar que somos seres de uma comunidade e que precisamos uns dos outros: de afectos e de ajuda prática. O aspecto consumista do Natal é uma coisa que me desgosta muito. Já não gosto de publicidade por norma, salvo alguns laivos de criatividade que a mesma permite, mas nesta época, põe-me quase "doente".
Um grande abraço e obrigada por este excelente texto.

Maria Josefa Paias disse...

Olá Manuela,
No Verão publiquei "Fogos do Solstício", agora "Glosa de Natal" e tenho outro para a Páscoa. São textos simples, para todos, independentemente de religiões e tradições e que, apesar de escritos nos anos 70, contêm os pontos de vista e a sabedoria da senhora Yourcenar, para nos lembrar o que é de facto importante.
Quanto à publicidade, sofro do mesmo mal.
Muito obrigada e um grande abraço.

Paulo Lobato disse...

Maria Josefa, a cada linha, sente-se a força da simplicidade deste extraordinário texto que nos recorda coisas que há muito deixámos para trás.
Muito bem escolhido (até porque não conhecia...).
Um abraço,

Maria Josefa Paias disse...

Muito obrigada, Paulo.
Ainda bem que gostou.
Um abraço.

Manuela Freitas disse...

Olá Josefa,
Excelente texto de Marguerite Yourcenar, que eu não conhecia e gostei bastante de ler.
Eu conheci o que era o Natal e é esse Natal, que eu considero que é o verdadeiro Natal e que nada tem a ver com o Natal actual. Como somos da mesma geração sabe a que me refiro... as relações entre as pessoas eram diferentes, a febre consumista do supérfulo não existia...
Já tenho pensado, que se pudésse gostaria de ficar a dormir e só acordar depois dessa festa tão artificial!?...
Bjs,
Manuela

Maria Josefa Paias disse...

Muito obrigada, Manuela Freitas.
É precisamente como diz.
A minha vontade de "dormir" estende-se não só ao Natal mas também à passagem de ano.
Um beijinho.

Maria Josefa Paias disse...

Agradeço à Ana Paula o comentário que deixou no facebook sobre este texto.
Um abraço.

Ana Paula Sena disse...

Josefa, ainda gostava de acrescentar aqui que também eu preferia "dormir e acordar depois de tudo ter passado".

...e gostei imenso quando acrescentou que essa vontade se estende até à passagem de ano! :))

Idem!

Com um grande abraço.