segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Ler e não ler, segundo Henry Miller

"Quanto mais escrevemos, menos os livros nos estimulam. Lemos para corroborar, isto é, para apreciar os nossos próprios pensamentos expressos nas variadas formas alheias.
Durante a juventude, o nosso apetite, tanto pela experiência pura como pelos livros, é descontrolado. Onde houver fome excessiva, e não mero apetite, tem de haver uma razão vital para isso. É por demais evidente que o modo de vida actual não nos oferece alimento condigno. Se assim fosse, estou certo de que leríamos menos, trabalharíamos menos e nos empenharíamos menos. Não precisaríamos de substitutos, não aceitaríamos sucedâneos para a nossa maneira de viver. Isto aplica-se a todos os domínios: comida, sexo, viagens, religião, aventura. Damos início à viagem com o pé esquerdo. Percorremos a estrada larga com um pé na sepultura. Não temos objectivo nem desígnio definidos, nem a liberdade de não ter objectivo nem desígnio. Somos, na maioria, sonâmbulos, e morremos sem sequer abrir os olhos.
Se as pessoas apreciassem profundamente tudo o que lêem, não haveria qualquer desculpa para falar assim. Mas lêem como vivem - sem objectivo, ao acaso, de uma forma débil e vacilante. Se já estão a dormir, o que quer que leiam só as faz mergulhar num sono mais profundo. Se se encontram apenas num estado de letargia, tornam-se mais letárgicas. Se são preguiçosas, ficam-no ainda mais. E assim sucessivamente. Apenas o homem que está bem desperto é capaz de apreciar um livro, de extrair dele o que é vital. Um indivíduo desses aprecia o que quer que penetre na sua experiência, e, a não ser que eu esteja terrivelmente enganado, não faz distinção entre a experiência que a leitura lhe proporciona e as experiências múltiplas do quotidiano. O homem que aprecia plenamente o que lê, ou faz, ou mesmo o que diz, ou simplesmente o que sonha ou imagina, beneficia ao máximo. Aquele que procura lucrar, mediante uma forma ou outra de disciplina, ilude-se a si mesmo. É por estar firmemente convencido disto que abomino a publicação de listas de livros para aqueles que estão a dar os primeiros passos na vida. Segundo creio, as vantagens que se podem extrair deste tipo de auto-educação são ainda mais dúbias do que as supostas vantagens obtidas mediante os métodos de educação correntes. A maioria dos livros apresentados nessas listas não pode ser compreendida e apreciada antes de uma pessoa ter vivido e pensado por si mesma. Mais cedo ou mais tarde, toda essa porcaria tem de ser regurgitada". ...
"A verdade é que ultimamente deixámos de ter grandes autores para os quais nos possamos voltar - caso estejamos em busca de verdades eternas. Rendemo-nos ao transitório. As nossas esperanças, débeis e vacilantes, parecem estar completamente centradas nas soluções políticas. Os homens afastam-se dos livros, o que quer dizer dos escritores, dos "intelectuais". É bom sinal - desde que substituam os livros pela vida! Mas será isto que se passa? Nunca o medo da vida foi tão intenso. O medo da vida substitui o medo da morte. Vida e morte passaram a significar o mesmo. No entanto, nunca a vida encerrou tantas promessas como agora. Nunca na história do homem a questão foi tão clara - a opção entre a criação e o aniquilamento. Sim, deitem fora os vossos livros! Especialmente se eles encobrem a questão em causa. Nunca a própria vida foi mais um livro aberto do que no momento presente. Mas, seremos nós capazes de ler o Livro da Vida?
(-Que estás a fazer aí no chão?
-Estou a ensinar o alfabeto às formigas.)"
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Henry Miller, Os Livros da Minha Vida, Antígona, Lisboa, 2004, p.148/9 e 157/8, (original 1969).