segunda-feira, 28 de maio de 2012

Ingeborg Bachmann: "Uma espécie de perda"


Usámos a dois: estações do ano, livros e uma música.
As chaves, as taças de chá, o cesto do pão, lençóis de linho e uma
cama.
Um enxoval de palavras, de gestos, trazidos, utilizados,
gastos.
Cumprimos o regulamento de um prédio. Dissemos. Fizemos.
E estendemos sempre a mão.

Apaixonei-me por Invernos, por um septeto vienense e por
Verões.
Por mapas, por um ninho de montanha, uma praia e uma
cama.
Ritualizei datas, declarei promessas irrevogáveis,
idolatrei o indefinido e senti devoção perante um nada,

(- o jornal dobrado, a cinza fria, o papel com um apontamento)
sem temores religiosos, pois a igreja era esta cama.

De olhar o mar nasceu a minha pintura inesgotável.
Da varanda podia saudar os povos, meus vizinhos.
Ao fogo da lareira, em segurança, o meu cabelo tinha a sua cor
mais intensa.
A campainha da porta era o alarme da minha alegria.

Não te perdi a ti,
perdi o mundo.


Ingeborg Bachmann (1926-1973)

O tempo aprazado (últimos poemas 1957-1967)
tradução de Judite Berkemeier e João Barrento, Assírio & Alvim, 1992

R. Schumann: Piano Concerto in A minor op.54, Intermezzo

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Teodomiro Leite de Vasconcelos: Canto do Verbo em busca da forma


Eu presido a todos os enganos
os do céu os da terra há tantos anos
que nem o tempo os lembro
Antes do mar fui voo
Antes do sal fui mar e sede antes da água fresca
Antes do verso eu fui a poesia
Eu sou antes de Deus e do universo
Estando antes eu nunca fui ontem
e sendo a tudo preso nunca fui refém
nem de mim mesmo porque a minha fome
não tem distância horizonte não tem nome
Sempre que me contam sou inumerável
sempre que me caçam sou invulnerável
Eu nunca estou no pé e nunca estou no passo
a minha dimensão é outra sou o compasso cósmico
a que palpitam todas as galáxias
e a que se geram flores nos ramos das acácias
Não fui planeado nem projecto
Não sou vontade
Nas letras de prisão lêem-me liberdade
não a minha a tua a deles ou a de todos
Eu sou a liberdade do desejo
Do desejo dos lodos e das aves dos rios
dos homens e mulheres
de todo o espaço de todas as coisas
de todos os seres
Por isso eu presido a todos os enganos
os do céu os da terra há tantos anos
que nem o tempo os lembra
Sou a razão de todas as derrotas
o coração da mágoa as mãos do desespero
Eu sempre estou e permaneço e espero
desde o caos e canto o refazer do desejo
na sua liberdade como lábios no beijo
Em mim tudo recomeça grão a grão ponto a ponto peça a peça
mão a mão sol a sol segundo a segundo
porque comigo recomeça o mundo
até que tudo seja o que não vejo
até que o mundo seja o do desejo

Teodomiro Leite de Vasconcelos (1944-1997)
(jornalista e escritor moçambicano, embora tenha nascido em Arcos de Valdevez, Portugal)


Daniel Mille: Les beaux jours

domingo, 20 de maio de 2012

Rabindranath Tagore: A prisão do orgulho


Choro, metido na masmorra
do meu nome.
Dia após dia, levanto, sem descanso,
este muro à minha volta;
e à medida que se ergue no céu,
esconde-se em negra sombra
o meu ser verdadeiro.

Este belo muro
é o meu orgulho,
que eu retoco com cal e areia
para evitar a mais leve fenda.

E com este cuidado todo,
perco de vista
o meu ser verdadeiro.

Rabindranath Tagore (7/05/1861 – 7/08/1941)

in "O Coração da Primavera", tradução de Manuel Simões

quinta-feira, 10 de maio de 2012

Shostakovich: Jazz Suite n.º 2, III, Dance 1

Luiza Neto Jorge: A Magnólia


A exaltação do mínimo,
e o magnífico relâmpago
do acontecimento mestre
restituem-me a forma
o meu resplendor.

Um diminuto berço me recolhe
onde a palavra se elide
na matéria – na metáfora –
necessária, e leve, a cada um
onde se ecoa e resvala.

A magnólia,
o som que se desenvolve nela
quando pronunciada,
é um exaltado aroma
perdido na tempestade.

um mínimo ente magnífico
desfolhando relâmpagos
sobre mim.

Luiza Neto Jorge [10/5/1939 - 23/2/1989]

(Desenho por José Escada)