sábado, 29 de agosto de 2009

Desabafos da Luísa (3)




Programas eleitorais do PSD e do PS

Encontrei a Luísa muito introspectiva e quis saber o motivo daquele remoer interior, ao que ela respondeu: - Agora que Manuela Ferreira Leite pôs no papel o que se propõe fazer se ganhar as próximas eleições legislativas, e comparando este programa de governo com o de José Sócrates, fiquei um pouco desiludida com o facto de dois partidos, PSD e PS, que se situam na área da social-democracia, não terem uma visão de futuro, portanto de longo prazo, para Portugal.
No do PSD propõe-se, em casos específicos, fazer de maneira diferente o que o PS fez nesta legislatura. Por exemplo, no que respeita ao estatuto da carreira docente e à avaliação, coloca-se ao lado dos professores mas, por outro lado, exige que os magistrados e juízes sejam avaliados pela qualidade e quantidade dos seus desempenhos e faz depender disso as respectivas remunerações. Quer dizer, vamos deixar de ver os professores na rua e passamos a ver juízes e magistrados em manifestações, se Ferreira Leite ganhar as eleições. Fala ainda no encurtamento dos prazos das decisões judiciais, só que isso não depende dela, uma vez que os prazos processuais estão todos definidos na Lei, e as leis têm de ser aprovadas pela Assembleia da República! Lá teremos mais alterações ao Código do Processo Penal, isto admitindo que a corporação de juízes e magistrados fique muito sossegadinha. Não nos podemos esquecer que os Tribunais constituem um órgão de soberania (embora não pareça pelos sindicatos que os magistrados formaram) e, por isso, tudo o que gira à sua volta tem um poder de influência que a corporação dos professores não tem. Resumindo: só este pormenor do programa do PSD já dá para afligir e prever, se for adiante, uma agitação e uma instabilidade insuportável. Eu tenho consciência de que as crises é que devem ser consideradas a regra e a estabilidade a excepção, que são as crises que nos permitem fazer rupturas com o que está errado e fazer escolhas mais acertadas para resolver os problemas. Mas uma coisa é isso e outra coisa é vivermos diariamente num pandemónio que só os magistrados sabem fazer quando lhes chega a mostarda ao nariz. Os médicos, os enfermeiros e os professores, em comparação, são uns santos, devido à diferença no poder de influência que aqueles possuem. E se a lentidão da Justiça tem sido um dos nossos calcanhares de Aquiles para o investimento estrangeiro em Portugal, com mais essa perturbação é bem possível que o desemprego atinja os 11% ou 12%, senão mais, já que Ferreira Leite também não quer investir em grandes obras públicas.
Outro pormenor do programa do PSD que me deixou a pensar é o da cobrança do IVA. Os empresários e empresas só entregarão o IVA às Finanças quando o tiverem recebido dos clientes, e não, como agora, que têm prazos determinados, ao longo do ano, para o fazerem, independentemente de já o terem recebido. Tal implica que o Estado vai ficar com menos dinheiro disponível e em prazos regulares e previsíveis para cumprir as suas obrigações, ficando sem se saber quando é que esses montantes entrarão nos cofres do Estado pois ficam dependentes dos bons e maus pagadores dentro do tecido empresarial. Creio que esta medida introduz um grão de areia na engrenagem, para não dizer um pedregulho.
Manuela Ferreira Leite também se propõe acabar com as taxas moderadoras para internamentos e cirurgias hospitalares, de que já estão isentos mais de 50% dos cidadãos, o que significa que essa medida abrangeria apenas os restantes e, desses, apenas os que são tratados em hospitais públicos. Salvo erro, por cada dia de internamento paga-se actualmente € 5,00, pelo que, por aí, não viria o Serviço Nacional de Saúde abaixo. Já quanto à descida da taxa social única em 2% para os empregadores, tenho dúvidas que o Fundo da Segurança Social, que com o sacrifício de todos se conseguiu estabilizar e garantir as reformas a mais longo prazo e a agilização no pagamento dos subsídios de desemprego, não venha a conhecer de novo as dificuldades de outrora. E como Ferreira Leite também quer alargar os períodos de concessão dos subsídos de desemprego, mesmo que temporariamente, quer dizer, menos dinheiro a entrar e mais dinheiro a sair. Nada disto faz sentido na minha cabeça.
Surgiu-me, inclusivé, uma ideia maluca para evitar este faz e desfaz todos os 4 anos; é que a duração de cada legislatura fosse de 8 anos, com orçamentos quadrienais, e que a meio da legislatura se fizesse o balanço da acção governativa, podendo os cidadãos serem chamados a pronunciar-se sobre a mesma, não com a finalidade de substituir o partido no governo mas para avaliar a sua gestão e, consoante o veredicto cidadão, dar oportunidade ao governo em funções de corrigir o que houvesse a corrigir. Para assegurar o regular funcionamento das instituições já existe um órgão de soberania que é a Presidência da República, não se colocando, assim, nem o espectro da ditadura nem da anarquia. Sempre o Estado de Direito, embora eu preferisse um Estado de Justiça. E com esta me vou.
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(uma nota: enquanto estive a escrever em papel as apreensões da Luísa, vi que um cartaz enorme da campanha de Manuela Ferreira Leite caíu do seu suporte, rasgou-se e andou ao sabor do vento, enquanto um vizinho do prédio ao lado tentava arrastar os destroços para não irem para a estrada perturbar o trânsito. Ah! o da CDU, que estava num poste de iluminação, também foi abaixo. Esta brisa cruzada entre as serras de Carnaxide, de Sintra e o Atlântico faz destas coisas! O pessoal da Câmara de Oeiras não demorou a vir recolhê-los, o que quer dizer que o vizinho os chamou. Como entre a queda dos cartazes e a sua recolha decorreu apenas meia-hora, parabéns ao vizinho pelo gesto de cidadania e à Câmara pela rapidez. Quanto ao resto, é pura coincidência.)

terça-feira, 25 de agosto de 2009

A. Schopenhauer - pensamentos

À semelhança do que fiz com Nietzsche, e que é uma das páginas mais visitadas, compilei alguns pensamentos de Arthur Schopenhauer (a imagem representa ambos), que se encontram dispersos por várias das suas obras e cujos títulos indicarei no fim. Espero assim satisfazer muitos que também o procuram e que só encontravam citações dispersas.
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Talento é quando um atirador atinge um alvo que os outros não conseguem. Génio é quando um atirador atinge um alvo que os outros não vêem.
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Se olharmos a vida nos seus pequenos detalhes, tudo parece muito ridículo. É como uma gota de água vista ao microscópio, uma só gota cheia de protozoários. Achamos muita graça a como eles se agitam e lutam tanto entre si. Aqui, no curto período da vida humana, essa actividade febril produz um efeito cómico.
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A maior sabedoria é ter o presente como o objecto maior da vida, pois este é a única realidade, tudo o mais é imaginação. Mas poderíamos também considerar isso a nossa maior maluquice, pois aquilo que existe só por um instante e desaparece, não merece um esforço sério.
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Uma pessoa de raros dons intelectuais, obrigada a fazer um trabalho apenas útil, é como um jarro valioso, com as mais lindas pinturas, usado como pote de cozinha.
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É interessante que, além da vida real, o homem tem sempre uma segunda vida abstracta onde, com calma deliberação, o que antes o deixava nervoso e irritado parece frio, sem graça e distante: ele é mero espectador e observador.
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As grandes dores fazem com que as menores mal sejam sentidas e, na falta das grandes, até o menor desgosto nos atormenta.
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A alegria e despreocupação da nossa juventude deve-se, em parte, ao facto de estarmos a subir a montanha da vida e não vermos a morte que nos aguarda do outro lado.
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Feliz é o homem que consegue evitar a maioria dos seus semelhantes.
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No fim da vida, a maioria dos homens percebe, surpreendida, que viveu provisoriamente e que as coisas que abandonou por não terem graça ou interesse eram, justamente, a vida. E assim, traído pela esperança, o homem dança nos braços da morte.
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Na infância, o aparelho sexual está inactivo, enquanto o cérebro funciona plenamente, por isso, essa é a época da inocência e da felicidade, o paraíso perdido do qual sentimos falta pelo resto da vida.
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O sexo intromete-se com o seu lixo e interfere nas negociações dos estadistas e nas investigações dos eruditos. Todos os dias destrói os relacionamentos mais preciosos e rouba os escrúpulos aos que antes eram honestos.
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Se não conto o meu segredo, ele é meu prisioneiro. Se o deixo escapar, sou prisioneiro dele. A árvore do silêncio dá os frutos da paz.
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Cada vez que respiramos, afastamos a morte que nos ameaça.(...) No fim, ela vence, pois desde o nascimento é esse o nosso destino e ela brinca um pouco com a sua presa antes de a comer. Mas continuamos a viver com grande interesse e inquietação durante o máximo tempo possível, do mesmo modo que sopramos uma bola de sabão até esta ficar bastante grande, embora tenhamos a certeza absoluta que vai rebentar.
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A vida é uma coisa miserável. Decidi passar a minha a pensar nisso.
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Uma vida feliz é impossível. O máximo que se pode ter é uma vida heróica.
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A sólida base da nossa visão do mundo, bem como o grau da sua profundidade, são formados na infância. Essa visão é depois elaborada e aperfeiçoada, mas, na essência, não se altera.
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A religião tem todas as coisas a seu favor: a revelação feita por Deus aos homens, as profecias, a protecção do governo, das figuras mais respeitáveis e mais importantes. Mais que isso, o enorme privilégio de poder gravar a sua doutrina na mente das pessoas quando são crianças e, com isso, as ideias tornam-se quase congénitas.
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Num espaço infinito, inúmeras esferas luminosas em volta das quais giram dezenas de outras menores, quentes no centro e cobertas por uma casca dura e fria, onde uma névoa bolorenta originou a vida e os seres conhecidos. Esta é a realidade, o mundo.
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A primeira regra para não ser um brinquedo nas mãos de qualquer velhaco, nem ridicularizado por qualquer imbecil, é manter-se reservado e distante.
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Quando tinha trinta anos, estava cansado e aborrecido por ter de considerar iguais a mim pessoas que nada tinham a ver comigo. Como um gato que, quando pequeno, brinca com bolas de papel porque pensa que são vivas e se parecem com ele, assim me sinto eu em relação aos bípedes.
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Poucas coisas deixam as pessoas tão satisfeitas como ouvir algum problema ou constatar alguma fraqueza em ti.
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Deveríamos limitar os nossos desejos, controlar as nossas vontades e dominar a nossa raiva, sabendo que só conseguimos o mínimo do que vale a pena ter.
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Não há rosa sem espinhos. Mas há muitos espinhos sem rosa.
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Não escrevi para a multidão. (...) A minha obra é para os que pensam e que, no decorrer do tempo, vão ser a excepção. Sentirão o que eu senti, como um marinheiro náufrago numa ilha deserta, para quem a pegada de um ex-companheiro de sofrimento dá mais consolo do que as catatuas e os macacos nas árvores.
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Mesmo sem motivo, sinto sempre uma ansiedade que me faz ver e procurar perigo onde ele não existe. Isso aumenta infinitamente qualquer aflição e faz com que a ligação com os outros seja muito difícil.
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Os escritos e ideias deixados em livro por homens como eu são o meu maior prazer na vida. Sem livros, teria desesperado há muito tempo.
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Vista da juventude, a vida é um longo futuro; a partir da velhice, parece um curto passado. Quando partimos num navio, as coisas na praia vão diminuindo e ficando mais difíceis de distinguir; o mesmo se passa com os factos e actividades do nosso passado.
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Quem ama sente uma enorme desilusão depois de, finalmente, chegar ao prazer. E, surpreendido, vê que aquilo que tanto desejou proporciona o mesmo que qualquer outra relação sexual, e assim não encontrará muitas vantagens em amar.
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Devemos encarar com tolerância todas as loucuras, fracassos e vícios dos outros, sabendo que apenas encaramos as nossas próprias loucuras, fracassos e vícios.
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Ao chegar ao fim da vida, nenhum homem sincero e na posse das suas faculdades vai desejar voltar a viver. Preferirá morrer para sempre.
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Consigo suportar a ideia de que poucas horas depois de morrer, os vermes comerão o meu corpo, mas estremeço ao imaginar professores a criticar a minha filosofia.
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Desejar o mínimo possível e saber o máximo possível.
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A vida pode ser comparada a um bordado que no começo da vida vemos pelo lado direito e, no final, pelo avesso. O avesso não é tão bonito, mas é mais esclarecedor, pois deixa ver como são dados os pontos.
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Pensamentos extraídos das seguintes obras:
Parerga e Paralipomena
O Mundo como Vontade
O Mundo como Vontade e como Representação
(de manuscritos deixados)

domingo, 23 de agosto de 2009

Miguel de Unamuno: "A guerra é, no seu mais estrito sentido, a santificação do homicídio"


«(...) Há muito mais humanidade na guerra do que na paz. A não resistência ao mal implica resistência ao bem, e mesmo fora da defensiva, a própria ofensiva é, porventura, o que há de mais divino na Humanidade. A guerra é escola de fraternidade e laço de amor; é a guerra que, pelo choque e pela mútua agressão, tem posto em contacto os povos, e os tem levado a conhecer-se e a amar-se. O mais puro e mais fecundo abraço de amor que os homens se dão entre si é aquele que, no campo de batalha, se dão o vencedor e o vencido. E até mesmo o ódio depurado, que surge da guerra, é fecundo. A guerra é, no seu mais estrito sentido, a santificação do homicídio. Caim redime-se como general de exércitos. E, se Caim não tivesse matado seu irmão Abel, teria sido morto por este. Deus revelou-se principalmente na guerra; começou por ser o deus dos exércitos, e um dos maiores serviços da cruz é o de defender, na espada, a mão que a segura e brande.
Caim, o fratricida, foi o fundador do Estado, dizem os inimigos deste. E há que aceitá-lo e considerá-lo, em glória do Estado, filho da guerra. A civilização começou no dia em que um homem, sujeitando a outrem, e obrigando-o a trabalhar para os dois, pôde dar-se à contemplação do mundo, e obrigar o seu súbdito a trabalhos de luxo. Foi a escravatura que permitiu a Platão especular sobre a república ideal, e foi a guerra que consigo trouxe a escravatura. Não é em vão que Atena é a deusa da guerra e da ciência. Mas será preciso repetir, mais uma vez, estas verdades tão óbvias, mil vezes desprezadas e mil vezes renascidas?
O preceito supremo que ressalta do amor a Deus, base de toda a moral é este: entrega-te inteiramente, dá o teu espírito para o salvar, para o eternizar. Tal o sacrifício da vida.
E entregar-se implica, há que repeti-lo, impor-se. A verdadeira moral religiosa é, no fundo, agressiva, invasora.
O indivíduo, como indivíduo, o miserável indivíduo que vive preso ao instinto de conservação e dos sentidos, só pretende conservar-se, e toda a sua mania é não deixar penetrar ninguém na sua esfera, não consentir que o incomodem, que lhe importunem o descanso; em troca do que, ou para dar um exemplo e uma regra, ele renuncia a penetrar nos outros, a importunar o descanso deles, a apoderar-se deles. O «não faças a outrem o que não queres que te façam» tradu-lo ele assim: não me meto com os outros, os outros que não se metam comigo. Ele se amesquinha, e se torna sombrio, nesta avareza espiritual e nesta moral repulsiva do individualismo anárquico: cada um para si.»
Guernica de Picasso
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in Do Sentimento Trágico da Vida, pp 204/205.


sábado, 22 de agosto de 2009

Manuel Bandeira - Madrigal Melancólico

O que eu adoro em ti,
Não é a tua beleza.
A beleza, é em nós que ela existe.
A beleza é um conceito.
E a beleza é triste.
Não é triste em si,
Mas pelo que há nela de fragilidade e de incerteza.
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O que eu adoro em ti,
Não é a tua inteligência.
Não é o teu espírito subtil,
Tão ágil, tão luminoso,
-Ave solta no céu matinal da montanha.
Nem é a tua ciência
Do coração dos homens e das coisas.
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O que eu adoro em ti,
Não é a tua graça musical,
Sucessiva e renovada a cada momento,
Graça aérea como o teu próprio pensamento,
Graça que perturba e que satisfaz.
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O que eu adoro em ti,
Não é a mãe que já perdi.
Não é a irmã que já perdi.
E meu pai.
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O que eu adoro em tua natureza,
Não é o profundo instinto maternal
Em teu flanco aberto como uma ferida.
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Nem a tua pureza. Nem a tua impureza.
O que eu adoro em ti - lastima-me e consola-me!
O que eu adoro em ti, é a vida.
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(11 de Julho de 1920)
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Manuel Bandeira (Recife, 1886-1968)

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Agustina Bessa-Luís - excerto de A Sibila

«É esta a mais grandiosa história dos homens, a de tudo o que estremece, sonha, espera e tenta, sob a carapaça da sua consciência, sob a pele, sob os nervos, sob os dias felizes e monótonos, os desejos concretos, a banalidade que escorre das suas vidas, os seus crimes e as suas redenções, as suas vítimas e os seus algozes, a concordância dos seus sentidos com a sua moral. Tudo o que vivemos nos faz inimigos, estranhos, incapazes de fraternidade. Mas o que fica irrealizado, sombrio, vencido, dentro da alma mais mesquinha e apagada, é o bastante para irmanar esta semente humana cujos triunfos mais maravilhosos jamais se igualam com o que, em nós mesmos, ficará para sempre renúncia, desespero e vaga vibração. O mais veemente dos vencedores e o mendigo que se apoia num raio de sol para viver um dia mais, equivalem-se, não como valores de aptidões ou de razão, não talvez como sentido metafísico ou direito abstracto, mas pelo que em si é a atormentada continuidade do homem, o que, sem impulso, fica sob o coração, quase esperança sem nome.
Eis Quina, exemplo de energias humanas que entre si se devoraram e se deram vida. Vaidade e magnífico conteúdo espiritual foram os seus pólos; equilibrando-se entre eles, percorreu um extremo e outro da terra, venceu e foi vencida, sem que, porém, as suas aspirações mais inquietantes deixassem de ser, no seu íntimo, as mesmas formas incompletas, chave da transfiguração que os homens eternamente tentam moldar e se legam de mão em mão, como um segredo e como uma dúvida.
Eis Germa, que, embalando-se na velha rocking-chair, pensa e pressente, sabendo-se actual relicário desse terrível, extenuante legado de aspiração humana. Nas suas veias, estão todos os infinitos estados do passado, no seu cérebro condensaram-se muitas e muitas experiências que não viveu, as negações e afirmações ocupam vastos espaços da sua alma. Ela move-se ritmicamente baloiçando-se naquela sala onde se recolhem em pilhas as maçãs; todo o ar rescende a maçã que suga da própria pele a frescura e dela dessangra o suco que acrescentará a reserva da polpa viva, ainda por todo o Inverno.
Eis Germa, eis a sua vez agora e o tempo de traduzir a voz da sua sibila. Talvez, porém, o seu tempo seja improdutivo e nefasto, e ela fique de facto silenciosa, porque - quem é ela para ser um pouco mais do que Quina e esperar que os tempos novos sejam mais aptos a esclarecer o homem e a trazer-lhe a solução de si próprio? Talvez ela fique de facto imóvel no seu constante, lento ou vertiginoso baloiçar, na casa que fortuitamente habita, e a sua história fique hermeticamente fechada no círculo de aspirações que não conseguiu detalhar e cumprir, porque aconteceu ser cedo ou ser tarde, porque não se compreende ou não se crê o bastante, porque se deseja demasiado e isto é todo o destino, porque... porque...» (16 de Janeiro de 1953)
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Estes são os últimos parágrafos de A Sibila de Agustina Bessa-Luís, o primeiro livro dela que li e de que gostei muito, e que ficam aqui como homenagem enquanto ainda está viva, embora muito doente; estou a começar a ficar cansada de só homenagear alguns dos grandes seres humanos in memoriam, porque ela, a morte, apanha-nos quase sempre desprevenidos.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Mário de Sá-Carneiro - "A Queda"

E eu que sou o rei de toda esta incoerência,
Eu próprio turbilhão, anseio por fixá-la
E giro até partir... Mas tudo me resvala
Em bruma e sonolência.
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Se acaso em minhas mãos fica um pedaço de oiro,
Volve-se logo falso... ao longe o arremesso...
Eu morro de desdém em frente dum tesoiro,
Morro à míngua, de excesso.
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Alteio-me na cor à força de quabranto,
Estendo os braços de alma - e nem um espasmo venço!...
Peneiro-me na sombra - em nada me condenso...
Agonias de luz eu vibro ainda entanto.
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Não me pude vencer, mas posso-me esmagar,
- Vencer às vezes é o mesmo que tombar -
E como inda sou luz, num grande retrocesso,
Em raivas ideias ascendo até ao fim:
Olho de alto o gelo, ao gelo me arremesso...
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Tombei...
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E fico só esmagado sobre mim!

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Desabafos da Luísa (2)



Direitos dos consumidores
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A Luísa telefonou-me e disse: - Tem de ouvir esta! Como sabe, aos fins-de-semana a BP reduz o preço dos combustíveis em 6 cêntimos, mas reduz também o número de empregados ao balcão, ou seja, há mais viaturas a abastecer e menos gente para atender os clientes. Este domingo fui lá e encontrei uma fila ao balcão que já se prolongava para o exterior da loja. A causa - só estava uma empregada. A fila lá ía a passo de caracol, uns a pagar combustível e jornais, outros só jornais ou revistas, outros pão, água, tabaco, enfim, o que se vende nesses postos que têm loja de conveniência. A certa altura, um pouco à minha frente, dois homens pediram garrafas de gás propano. A empregada disse-lhes que não podia ir lá fora dar-lhes as garrafas porque a colega tinha ido almoçar e ela estava sozinha e não podia deixar o balcão. Esses clientes disseram à empregada que isso não era problema deles, que não havia qualquer cartaz escrito com essa informação, que estavam há quase meia hora na fila e precisavam do gás, a empregada que ligasse ao chefe para resolver o problema porque eles dali não saíam e que, enquanto não fossem atendidos, mais ninguém o seria - e a fila a crescer. Alguém do fundo da fila sugeriu que pedissem o livro de reclamações para o preencherem enquanto esperavam; outro dizia que, se não querem contratar mais empregados, mais valia fecharem aos fins-de-semana, que os clientes iriam a outro lado, que o que há mais por aqui são postos de abastecimento de combustível. Entretanto a empregada telefonou ao chefe a expôr-lhe a situação e colocou uma tabuleta com a indicação que, de momento, não vendiam garrafas de gás.
Estava eu encantada com toda esta demonstração de conhecimento dos direitos dos consumidores e com a posição firme daqueles 2 clientes em não darem a vez a outros enquanto não fosse resolvido o seu problema quando um deles resolve dizer: vamos mas é embora (e um palavrão)! Lembrei-me, então, de um estudo publicado há cerca de um mês por um organismo europeu em que se concluía que os portugueses eram, entre os europeus, os que reclamavam menos dos serviços, e de ter pensado, nessa altura, que eles não conhecem os portugueses. Quanto a reclamações e queixas, para não dizer queixinhas, devemos estar entre os primeiros. Só que nestas coisas, o que conta para as estatísticas são as reclamações escritas, apresentadas segundo a legislação dos respectivos países, e aí, está bem, está!, os portugueses são avessos a assinarem reclamações onde têm que identificar-se e, por vezes, até apresentar testemunhas. A não ser que seja só por preguiça! Se aqueles clientes da BP tivessem levado até ao fim a sua atitude, que além de pedagógica para alguns que estavam na fila, quem sabe se não contribuiriam para a contratação de mais uma pessoa para aquela loja de conveniência. Mas isto já sou eu a divagar.

domingo, 9 de agosto de 2009

Desabafos da Luísa (1)

Cada qual com a sua cruz
Dizia-me a Luísa num destes dias: - É tão triste apercebermo-nos de que não temos ninguém neste mundo, mesmo quando temos ainda família, e aí é que reside o desgosto, ter família e tudo se passar como se a não tivesse. Não querem saber de ninguém senão deles próprios. Se contactam, é para anunciar funerais, ou enviam um ou outro sms pelo Natal e pelos meus anos, e está feito. Por vezes sinto que até Deus se esqueceu de mim. Vim sentar-me neste banco de jardim, ao sol, porque preciso que esta luz penetre nos meus olhos; preciso de me afastar de casa onde há dias em que não paro de chorar. Choro a morte de escritores, de pintores, de actores, de poetas, de gente que embelezou este mundo, que não por mim. Para cúmulo, a maioria das mensagens que recebo pela Internet, são reencaminhamentos daquelas paisagens muito bonitas onde se sobrepõem textos mais ou menos espirituais ou filosóficos, autênticos tratados sobre a verdadeira amizade, o verdadeiro amor, como as famílias podem ser felizes, como podemos salvar o planeta, os animais, os rios e os oceanos, enfim, essas mensagens que circulam pelo mundo electrónico e que recebemos mais que uma vez. No entanto, se estou vários dias sem as reencaminhar, nenhuma dessas pessoas, que se mostram tão minhas "amigas" e que se "lembram tanto de mim" através desse tipo de mensagens que me enviam, e que toda a gente recebe, nenhuma delas, até hoje, se lembrou de me enviar uma mensagem personalizada ou sms onde, simplesmente, me pergunte se estou doente, se necessito de alguma coisa, de companhia, de conversar, de desabafar, como estou agora a fazer consigo!

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Marguerite Yourcenar - Fogos do Solstício

O solstício de Inverno tem por festa o Natal; a Páscoa, no equinócio da Primavera, ocupa por si só o lugar de todas as outras festas do ressurgimento, como as Maias que os jovens e donzelas celebravam na Idade Média a cavalo pelas florestas ou dançando na erva, ou as rogações quase desaparecidas por o homem da nossa época não amar bastante a terra, nem o céu, para atrair sobre aquela as bênçãos deste. O São João, festa do solstício de Verão, viu apagar-se por quase toda a parte as suas fogueiras, salvo talvez nos países escandinavos, onde os lagos reflectem ainda as suas chamas. Mas já ninguém na Sicília fica à espreita na véspera do dia 24 de Junho, para ver uma Salomé nua a dançar ao Sol nascente, levando num prato de ouro, ele próprio uma imagem solar, a cabeça cortada do Precursor.
E decerto o homem do deserto alimentado de mel e de gafanhotos, o profeta queimado pelo reflexo do sol a pique sobre as rochas, o pregador de palavra incandescente, poderia simbolizar no Oriente a estação ardente, e o refrescante contraste da água do Jordão só lhe reforça a intensidade. Mas parece que o elemento de esplendor e de serena claridade, tão ligado nas nossas regiões temporadas à própria ideia de solstício de Junho, faz muita falta a esta história de ascetismo e de sangue. Outras festas cristãs, o Pentecostes, com as suas chamas místicas, o Corpo de Deus, com a sua procissão floral e rústica em torno da custódia, são também festas de Verão; elas nunca foram sentidas como as festas de Verão. A estação que é ela própria uma festa não precisa de falar de uma festa sua.
Pareceria no entanto que os fogos-de-artifício do 14 de Junho em França e a orgia de foguetes e petardos no 4 de Julho americano respondem ao mesmo velho desejo do homem de reproduzir na Terra um grande episódio solar, de aumentar ainda, se possível, o calor e a luz vindos do céu. Não lamentamos demasiado que o velho fogo-de-vista que brilhava de aldeia em aldeia, de monte em monte, ameaçando de incêndios florestas e pastos, se tenha definitivamente extinto, por muito pitorescos que fossem os saltos na fogueira. Os bailes e os arraiais, também eles quase caídos em desuso, tomaram de certo modo o seu lugar, mas já dessacralizados, salvo talvez alguns lampejos de patriotismo motivados apenas na consciência dos que dançam por certas ideias feitas da nossa história. E talvez o enorme e quase aterrador êxodo estival dos nossos dias seja um rito solar que se ignora.
Mas a ideia de uma festa do solstício causa-nos uma estranha vertigem semelhante à do homem que se mantém em equilíbrio numa esfera escorregadia. Esta plena medida de luz, esse dia mais longo do ano, que no cabo Norte dura quase dez semanas, é também o momento em que na Antárctica a noite reina, apenas iluminada pelos fogos longínquos dos astros. Mais ainda, este apogeu marca o começo de uma descida; os dias irão decrescendo até ao nadir do solstício de Inverno; o Inverno astronómico começa em Junho, como o Verão astronómico começa em Dezembro, quando as horas de luz crescem insensivelmente de novo até ao auge que é o São João. Temos diante de nós três meses de prados verdes, de flores, de colheitas, de areia quente nas praias, de cantos nas árvores, mas o movimento do céu prepara já o Inverno, como em pleno Inverno é o Verão que se prepara. Estamos metidos nesta dupla espiral que sobe e desce. «Pára, és tão belo!», poderia dizer Fausto ao solstício de Junho. Seria em vão. É só em nós, e mesmo assim sem grande esperança nem grande fé, que iremos encontrar a estabilidade. (1977)
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in O Tempo esse grande escultor, tradução de Helena Vaz da Silva, Difel, Lisboa, 1984, páginas 110/1

sábado, 1 de agosto de 2009

Eduardo Lourenço - "perfil dos portugueses"

«(...) Os portugueses vivem em permanente representação, tão obsessivo é neles o sentimento de fragilidade íntima inconsciente e a correspondente vontade de a compensar com o desejo de fazer boa figura, a título pessoal ou colectivo. A reserva e a modéstia que parecem constituir a nossa segunda natureza escondem na maioria de nós uma vontade de exibição que toca as raias da paranóia, exibição trágica, não aquela desinibida, que é característica de sociedades em que o abismo entre o que se é e o que se deve parecer não atinge o grau patológico que existe entre nós. (...) Os portugueses não convivem entre si, como uma lenda tenaz o proclama, espiam-se, controlam-se, uns aos outros; não dialogam, disputam-se, e a convivência é uma osmose do mesmo ao mesmo, sem enriquecimento mútuo, que nunca um português confessará que aprendeu alguma coisa de um outro, a menos que seja pai ou mãe ...»
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in O Labirinto da Saudade - Psicanálise Mítica do Destino Português, Círculo de Leitores, Lisboa, 1988, página 74.