quarta-feira, 17 de junho de 2009

Os Amish vistos por Bernard-Henri Lévy








«Conhecia A Testemunha, o filme de Peter Weir, com Harrison Ford. Sabia que era uma seita estranha, vagamente anabaptista, que vivia no despojamento, ao ritmo da natureza e das culturas. Vejamos o que aconteceu. De regresso a Des Moines, e enquanto esperava retomar o meu caminho na direcção da costa californiana, ponho-me em busca desses famosos Amish, os plain people, os "homens simples", não havendo ninguém que soubesse dizer-me com precisão onde os encontrar. (...)
Seguir, pois, até Kalona, outra aldeia Potemkine, novamente vazia, com os seus correios de época, o seu saloon, a sua loja onde se vende tudo, sempre a mesma falsa aparência, ainda a mesma decoração: salvo que, desta vez, a decoração não é só uma decoração e que há realmente, nas quintas em redor, escondidos dos olhares, cortados do mundo, homens e mulheres que vivem segundo a lei ancestral dos amish. Amish, esses camponeses que vejo, ao longe, a trabalhar com charruas de há quinhentos anos. Amish, essas estradas adequadas, sem asfalto, onde as carroças - porque os amish só andam de carroça - levantam, diante do meu carro, densas nuvens de poeira. Amish, esses homens de calças castanhas e largos suspensórios que parecem saídos de um quadro de Le Nain - e amish, essas mulheres com vestidos de burel e touca branca que nunca cortam os cabelos. Amish, a recusa da electricidade, a não ser para os doentes profundos. Amish, a recusa dos estudos secundários e, de facto, estudos em geral - tudo, para os plain people, está na Bíblia; a existência pode ser, de uma ponta à outra, ritmada pela leitura da Bíblia. Amish, esses outros camponeses, de regresso dos campos, que fogem diante da minha máquina de filmar: Deus disse que não farás ídolos nem imagens; com mais forte razão, não é, imagens do rosto e do olhar? Amish, finalmente, a Community County Store onde se vendem pães amish, açúcares de cevada amish, canecas amish (inoxidáveis), embalagens amish (artesanais).
- Serve-se de uma máquina de calcular? - Pergunto eu à velha amish corcunda que está na caixa.
- Sim - afirma ela com uma voz espantosamente viva e aflautada - porque ela é de pilhas, não tem necessidade de electricidade.
E quando tento saber mais sobre a dificuldade de ser amish na América contemporânea, quando tenciono interrogá-la sobre a espécie de cidadãos que são quando são amish, se votam e por quem, se lêem os jornais e quais, como viveram o ataque do 11 de Setembro, se se sentem envolvidos, e como, pela ameaça terrorista, inicia-se uma breve conversa, rapidamente interrompida pelo seu sobrinho que se mostra desconfiado: não, os amish não votam; sim, os amish são maus patriotas e maus cidadãos; um amish não serve na função pública nem no exército; ser amish é estar-se nas tintas para o 11 de Setembro, a Al Qaeda, a segurança dos americanos e o resto. Aliás, a velha senhora não diz "os americanos", mas "os ingleses". Para os amish, os Estados Unidos não são um país, mas uma abstracção, uma ficção.
Quem são os amish, então? Quem são estes homens e estas mulheres que vivem em autarcia económica, com o olho fixo na eternidade? Uma contra-sociedade? Uma anti-América na América? O caso, único no Ocidente, de uma comunidade a-comunitária, que aplica o preceito bíblico de ficar à parte, separada? Insurrectos não exterminados? Secessionistas definitivos? Lembro-me como, nos anos 60, se dizia que os hippies tinham como modelo os índios: no fundo, talvez não; talvez o modelo fossem os amish...
A não ser que seja necessário ver a coisa ainda de outra maneira. A não ser que seja necessário pôr a teimosia dos "Homens Simples" na perspectiva desta filosofia política, digamos "excepcionalista", que eu sei não estar menos presente, nas cabeças americanas, do que na época de Tocqueville. Um suplemento ao pacto social. Uma peça adicional ao contrato. Esta cláusula a mais, aquele artigo em excesso, que os Pais fundadores não tinham previsto mas que fazem parte das suas intenções: o primeiro lógico que apareça sabe que esta é a condição para que um Todo não esteja saturado e para que uma sociedade que entre no jogo realize melhor o seu conceito e os seus desígnios. Ou então precisamente o inverso. As testemunhas, não de Deus, mas da América. Os seus verdadeiros e os seus últimos pioneiros. Os únicos que não cederam e que não resumiram a sua religião ao "in God we trust" das notas de banco. Os feiticeiros da pureza perdida. Os herdeiros do Mayflower. As testemunhas mudas, mas verdadeiramente mudas, porque, contrariamente aos índios, ou aos negros, não dizem nada, não reclamam nada e não têm nenhum motivo de queixa em relação a ninguém, as testemunhas mudas, pois, dos valores que foram os da América mas aos quais esta volta as costas desde que se vendeu à religião da mercadoria.
Já não a anti-América, mas a hiper-América. O seu conservatório. O seu Resto no sentido da Bíblia. A sua má consciência viva, mas, mais uma vez, silenciosa. Traíram o ideal dos Pais fundadores? Voltaram as costas aos vossos princípios? A América é um país falhado? Uma utopia não realizada? Pois aí está. Aqui estamos. Precisamente aqui. Não vos censuramos nada. Mas somos os amish. A verdade profunda, escondida, esquecida, negada, da América, mas viva dentro de nós.
Mistério - e grandeza - de um país que tolera isto. Imagino os amish em França. Imagino estes duzentos mil homens e mulheres, a sua demografia positiva, a sua perseverança, o seu testemunho, o seu irredentismo definitivo, no meu velho país jacobino, tão orgulhoso dos ritos da sua própria religião nacional.»
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in Vertigem Americana, Caderno, Asa Editores, 2007.

sábado, 13 de junho de 2009

Estranheza...


«Aquilo que, creio, produz em mim o sentimento profundo, em que vivo, de incongruência com os outros, é que a maioria pensa com a sensibilidade, e eu sinto com o pensamento.
Para o homem vulgar, sentir é viver e pensar é saber viver. Para mim, pensar é viver e sentir não é mais que o alimento de pensar.»
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Bernardo Soares/Fernando Pessoa no Livro do Desassossego.
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(Fernando Pessoa nasceu a 13 de Junho de 1888)

terça-feira, 9 de junho de 2009

Rainer Maria Rilke - excerto de carta a Franz Kappus (1904)

«A rapariga e a mulher, neste seu novo e próprio desenvolvimento, imitarão o jeito e os vícios dos homens e copiarão as profissões masculinas apenas por algum tempo. Uma vez vencida a insegurança destas transições, ver-se-á que esta multiplicação e constante mudança de disfarces (quantas vezes ridículos) ajudarão as mulheres a depurarem a sua natureza das influências desfiguradoras do outro sexo. As mulheres, em que a vida mora e perdura de maneira mais imediata, fértil e confiada, ter-se-ão no fundo tornado pessoas mais amadurecidas, pessoas mais humanas, quando comparadas com a leveza do homem, que é incapaz de penetrar a superfície da vida com o peso de um fruto carregado no ventre, que é demasiado petulante e precipitado para dar valor ao que julga amar. Esta humanidade da mulher, moldada pela dor e pela humilhação, será trazida à luz do dia quando ela se despir das convenções da feminilidade estrita, ao longo das metamorfoses da sua condição exterior, e os homens, que hoje não pressentem ainda esta mudança, serão surpreendidos e abalados por ela. Chegará o dia (e nos países nórdicos temos já sinais evidentes que anunciam e iluminam este dia) em que surgirão a rapariga e a mulher cujo nome já não designa nada que se oponha ao ser masculino, mas antes qualquer coisa que existe para si, qualquer coisa que não fará pensar em complemento ou limite, mas apenas na vida e na presença no mundo: o ser humano feminino.
Este progresso, contrariando de início a vontade dos homens ultrapassados, trará uma metamorfose da experiência do amor, que a mudará desde o seu fundamento até lhe dar a forma de uma relação entre um ser humano e outro ser humano, e já não entre um homem e uma mulher. E este amor mais humano (que se consumará num movimento infinitamente atencioso e discreto, e bom e claro, de prendimento e libertação) será semelhante àquele que arduamente preparamos e pelo qual lutamos, o amor de duas solidões que se protegem, delimitam e saúdam.(...)»
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in Rainer Maria Rilke, Cartas a um jovem poeta, Quasi Edições, trad. Isabel Castro Silva, 1.ª edição, 2008, V.N. Famalicão