sábado, 17 de setembro de 2011

Mia Couto - "Ânsia"


Não me deixem tranquilo
não me guardem sossego
eu quero a ânsia da onda
o eterno rebentar da espuma

As horas são-me escassas:
dai-me o tempo
ainda que o não mereça
que eu quero
ter outra vez
idades que nunca tive
para ser sempre
eu e a vida
nesta dança desencontrada
como se de corpos
tivéssemos trocado
para morrer vivendo
Mia Couto, em Raiz de orvalho e outros poemas, Caminho, 2009

John Coltrane Quintet - Wells Fargo

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Natália Correia - Insónia (homenagem em dia de aniversário)

Insónia. Abro a janela. Esvaimento
No abismo da solidão estrelada.
É inquietante a paz e um sentimento
De hora nenhuma vai da lua ao nada.

Tem nisto um deus sinistro o instrumento
De submeter-me em morte figurada?
Silêncio astral. Estático tormento
No eterno insone que inspira a hora parada

Suga-me o sangue um polvo agonizante.
Marginam o pensamento delirante
Espectros de prostitutas na avenida.

Pesam as pálpebras. Apodrece a ideia
De adormecer. O dia já clareia
Num galho tenro da árvore da vida.

Natália Correia (13/09/1923-16/03/1993)

Em Poesia Completa, Dom Quixote, Lisboa, 1999

domingo, 11 de setembro de 2011

Antero de Quental - "A uma amiga" (18/04/1842 - 11/09/1891)

Aqueles, que eu amei, não sei que vento
Os dispersou no mundo, que os não vejo…
Estendo os braços e nas trevas beijo
Visões que à noite evoca o sentimento…

Outros me causam mais cruel tormento
Que a saudade dos mortos… que eu invejo…
Passam por mim, mas como que têm pejo
Da minha soledade e abatimento!

Daquela Primavera venturosa
Não resta uma flor só, uma só rosa…
Tudo o vento varreu, queimou o gelo!

Tu só foste fiel – tu, como dantes,
Inda volves teus olhos radiantes…
Para ver o meu mal… e escarnecê-lo!

Antero de Quental, Sonetos Completos, Europa-América