segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Sermão de Santo António aos peixes (excerto)

Vós, diz Cristo Senhor nosso, falando com os Pregadores, sois o sal da terra: e chama-lhe sal da terra, porque quer que façam na terra, o que faz o sal. O efeito do sal é impedir a corrupção, mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo tantos nela que têm ofício de sal, qual será, ou qual pode ser a causa desta corrupção? Ou porque o sal não salga, ou porque a terra se não deixa salgar. Ou é porque o sal não salga, e os Pregadores não pregam a verdadeira doutrina; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhe dão, a não querem receber. Ou é porque o sal não salga, e os Pregadores dizem uma coisa e fazem outra; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem, que fazer o que dizem. Ou é porque o sal não salga, e os Pregadores se pregam a si e não a Cristo; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, em vez de servir a Cristo, servem a seus apetites. Não é tudo isto verdade? Ainda mal. (...)
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(Pregado na Cidade de S. Luís do Maranhão em 1654)
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Padre António Vieira (1608-1697)

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Mário de Sá-Carneiro - "Além-Tédio"


Nada me expira já, nada me vive -
Nem a tristeza nem as horas belas.
De as não ter e de nunca vir a tê-las,
Fartam-me até as coisas que não tive.
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Como eu quisera, enfim de alma esquecida,
Dormir em paz num leito de hospital...
Cansei dentro de mim, cansei a vida
De tanto a divagar em luz irreal.
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Outrora imaginei escalar os céus
À força de ambição e nostalgia,
E doente-de-Novo, fui-me Deus
No grande rastro fulvo que me ardia.
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Parti. Mas logo regressei à dor,
Pois tudo me ruiu.. Tudo era igual:
A quimera, cingida, era real,
A própria maravilha tinha cor!
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Ecoando-me em silêncio, a noite escura
Baixou-me assim na queda sem remédio;
Eu próprio me traguei na profundura,
Me sequei todo, endureci de tédio.
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E só me resta hoje uma alegria:
É que, de tão iguais e tão vazios,
Os instantes me esvoam dia a dia
Cada vez mais velozes, mais esguios...

domingo, 14 de dezembro de 2008

Nietzsche e o "inferno de Deus"

Um dia, o Diabo falou-me assim: "Deus também tem o seu inferno: é o seu amor pelos homens".
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Nietzsche, Assim falou Zaratustra

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Nietzsche - o que é um filósofo?

"Um filósofo: é um homem que experimenta, vê, ouve, suspeita, espera e sonha constantemente coisas extraordinárias; que é atingido pelos próprios pensamentos como se eles viessem de fora, de cima e de baixo, como por uma espécie de acontecimentos e de faíscas de que só ele pode ser alvo; que é talvez, ele próprio, uma trovoada prenhe de relâmpagos novos; um homem fatal, em torno do qual sempre ribomba e rola e rebenta e se passam coisas inquietantes. Um filósofo: ah, um ser que foge muitas vezes para longe de si mesmo, muitas vezes tem medo de si mesmo - mas que é demasiado curioso para não «voltar sempre a si»."
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(Para Além do Bem e do Mal, Guimarães Ed., 1978, p. 214)

domingo, 23 de novembro de 2008

Homenagem a Lévi-Strauss e Merleau-Ponty

Festeja-se em França, no próximo dia 28 de Novembro, o centésimo aniversário de Claude Lévi-Strauss (1908- ), Antropólogo e Filósofo que encontramos inserido na corrente do Estruturalismo.
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Algumas das suas obras:
«As estruturas elementares do parentesco» (1947)
«Antropologia estrutural» (1958)
«Le totémisme aujourd'hui» (1962)
«O pensamento selvagem»
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Em 1908 nasceu também outro filósofo francês, inserido na corrente Existencialista, Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), uma das maiores personalidades do pós-guerra.
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As suas obras principais:
«A estrutura do comportamento» (1942)
«A fenomenologia da percepção» (1945)
Ensaios:
«Humanismo e terror» (1947)
«Senso e não senso" (1948)
«As aventuras da dialéctica» (1955)
«Signos» (1960)

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Nietzsche - Máximas e Interlúdios

O sábio como astrónomo. - Enquanto sentires as estrelas como algo que está «por cima de ti», não possuis ainda o olhar de quem procura o conhecimento.

Não é a intensidade dos sentimentos elevados que faz os homens superiores, mas a sua duração.

Em tempo de paz, o homem belicoso ataca-se a si próprio.

Quem se despreza a si próprio, mesmo assim não deixa de se respeitar como desprezador.

Quem, em prol da sua boa reputação, não se sacrificou já uma vez - a si próprio?

Na bonomia nada há de misantropia, mas, precisamente por isso, demasiado desprezo pelo homem.

Maturidade do homem: isto significa ter-se reencontrado a seriedade que se tinha nas brincadeiras da infância.

Ter-se vergonha da sua imoralidade: é um degrau na escada em cujo extremo se tem também vergonha da sua moralidade.

Devemo-nos despedir da vida como Ulisses se despediu de Nausica - mais abençoando-a do que apaixonado por ela.

Quando adestramos a nossa consciência, ela beija-nos ao mesmo tempo que nos morde.

Perante nós mesmos, todos fingimos ser mais ingénuos do que somos: é deste modo que descansamos dos outros homens.

Graças à música, as paixões aprazem-se a si próprias.

Uma vez tomada a decisão de não dar ouvidos mesmo ao melhor contra-argumento: sinal de carácter forte. Por conseguinte, uma ocasional vontade de se ser estúpido.

Não há fenómenos morais, mas apenas uma interpretação moral de fenómenos...
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As grandes épocas da nossa vida são aquelas em que adquirimos a coragem de considerar como o melhor o que em nós há de mau.
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Há uma inocência na admiração: é a daquele a quem ainda não passou pela cabeça que também ele poderia, um dia, ser admirado.
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Em certas pessoas, o alegrar-se com um elogio é apenas delicadeza do coração - e precisamente o contrário de vaidade do espírito.
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Se temos que mudar de opinião a respeito de alguém, levamos-lhe muito a mal o incómodo que assim nos causa.
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Um povo é o rodeio da Natureza para chegar a seis ou sete grandes homens. - Sim, para depois se desviar deles.
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O Diabo tem as mais vastas perspectivas para Deus, por isso é que se mantém tão longe dele: o Diabo, ou seja o mais velho amigo do conhecimento.
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Começa-se a adivinhar o que vale alguém quando o seu talento começa a enfraquecer, quando deixa de mostrar do que é capaz. O talento também é um adorno; um adorno também é um esconderijo.
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É pelas próprias virtudes que se é mais bem castigado.
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O fariseísmo não é uma degenerescência do homem bom: pelo contrário, boa parte dele é mesmo a condição prévia para se ser bom.
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Um procura um parteiro para os seus pensamentos, o outro alguém a quem possa auxiliar: é assim que nasce uma boa conversa.
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No convívio com sábios e artistas, a gente facilmente se engana no sentido oposto: não é raro encontrarmos por detrás dum sábio notável um homem medíocre, e muitas vezes, por detrás dum artista medíocre, um homem muito notável.
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A nossa vaidade gostaria que o que fazemos melhor fosse considerado como aquilo que mais nos custa. Para a origem de certas morais.
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Quem luta com monstros deve velar por que, ao fazê-lo, se não transforme também em monstro. E se tu olhares, durante muito tempo, para dentro de um abismo, o abismo também olha para dentro de ti.
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Não basta ter-se talento: é preciso ter-se o vosso assentimento para o possuir - não é verdade, meus amigos?
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A loucura é rara nos indivíduos - mas é a regra nos grupos, nos partidos, nos povos, nas épocas.
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Os poetas são impudicos para com as suas vivências: exploram-nas.
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«O nosso próximo não é o nosso vizinho, mas o vizinho deste» - assim pensam todos os povos.
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Em face de qualquer partido. - Um pastor precisa sempre também de um carneiro condutor, ou, em certas ocasiões, ele próprio tem de ser carneiro.
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Falar muito de si próprio pode ser também um meio de se esconder.
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Em última análise, amam-se os desejos, e não o objecto desses desejos.
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As consequências das nossas acções agarram-nos pelos cabelos, sem nada se importarem com o facto de, entretanto, nos termos «corrigido».
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Fiquei magoado, não por me teres mentido, mas por não poder voltar a acreditar-te.
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Há uma exuberância na bondade que parece ser maldade.
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«Ele desagrada-me.» - Porquê? - «Não estou à sua altura.» Jamais um homem respondeu assim?
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(in "Para Além do Bem e do Mal", Guimarães & C.ª Ed., Lisboa, 1978, págs.77/89)

sábado, 1 de novembro de 2008

A celebridade

«Às vezes, quando penso nos homens célebres sinto por eles toda a tristeza da celebridade.
A celebridade é um plebeismo. Por isso deve ferir uma alma delicada. É um plebeismo porque estar em evidência, ser olhado por todos inflige a uma criatura delicada uma sensação de parentesco exterior com as criaturas que armam escândalo nas ruas, que gesticulam e falam alto nas praças. O homem que se torna célebre fica sem vida íntima: tornam-se de vidro as paredes da sua vida doméstica; é sempre como se fosse excessivo o seu traje; e aquelas suas mínimas acções - ridiculamente humanas às vezes - que ele quereria invisíveis, coa-as a lente da celebridade para espectaculosas pequenezes, com cuja evidência a sua alma se estraga ou se enfastia. É preciso ser muito grosseiro para se poder ser célebre à vontade.
Depois, além dum plebeismo, a celebridade é uma contradição. Parecendo que dá valor e força às criaturas, apenas as desvaloriza e as enfraquece. Um homem de génio desconhecido pode gozar a volúpia suave do contraste entre a sua obscuridade e o seu génio; e pode, pensando que seria célebre se quisesse, medir o seu valor com a sua melhor medida, que é ele próprio. Mas, uma vez conhecido, não está mais na sua mão reverter à obscuridade. A celebridade é irreparável. Dela como do tempo, ninguém torna atrás ou se desdiz.
E é por isto que a celebridade é uma fraqueza também. Todo o homem que merece ser célebre sabe que não vale a pena sê-lo. Deixar-se ser célebre é uma fraqueza, uma concessão ao baixo instinto, feminino ou selvagem, de querer dar nas vistas e nos ouvidos.
Penso às vezes nisto coloridamente. E aquela frase de que "homem de génio desconhecido" é o mais belo de todos os destinos, torna-se-me inegável; parece-me que esse é não só o mais belo, mas o maior dos destinos.»
(...)
"Crónica", Fernando Pessoa, 1915

domingo, 19 de outubro de 2008

Moral do "não fazer nem mal nem bem"

"Assim como, quer o saibamos quer não, temos todos uma metafísica, assim também, quer o queiramos quer não, temos todos uma moral. Tenho uma moral muito simples - não fazer a ninguém nem mal nem bem. Não fazer a ninguém mal, porque não só reconheço nos outros o mesmo direito que julgo que me cabe, de que não me incomodem, mas acho que bastam os males naturais para mal que tenha que haver no mundo. Vivemos todos, neste mundo, a bordo de um navio saído de um porto que desconhecemos para um porto que ignoramos; devemos ter, uns para os outros, uma amabilidade de viagem. Não fazer bem, porque não sei o que é o bem, nem se o faço quando julgo que o faço. Sei eu que males produzo se dou esmola? Sei eu que males produzo se educo ou instruo? Na dúvida, abstenho-me. E acho, ainda, que auxiliar ou esclarecer é, em certo modo, fazer o mal de intervir na vida alheia. A bondade é um capricho temperamental: não temos o direito de fazer os outros vítimas de nossos caprichos, ainda que de humanidade ou de ternura. Os benefícios são coisas que se infligem; por isso os abomino friamente.
Se não faço o bem, por moral, também não exijo que mo façam. Se adoeço, o que mais me pesa é que obrigo alguém a tratar-me, coisa que me repugnaria de fazer a outrem. Nunca visitei um amigo doente. Sempre que, tendo eu adoecido, me visitaram, sofri cada visita como um incómodo, um insulto, uma violação injustificável da minha intimidade decisiva. Não gosto que me dêem coisas; parecem com isso obrigar-me a que as dê também - aos mesmos ou a outros, seja a quem for.
Sou altamente sociável de um modo altamente negativo. Sou a inofensividade incarnada. Mas não sou mais do que isso, não quero ser mais do que isso, não posso ser mais do que isso. Tenho para com tudo que existe uma ternura visual, um carinho da inteligência - nada no coração. Não tenho fé em nada, esperança de nada, caridade para nada. Abomino com náusea e pasmo os sinceros de todas as sinceridades e os místicos de todos os misticismos, ou, antes e melhor, as sinceridades de todos os sinceros e os misticismos de todos os místicos. Essa náusea é quase física quando esses misticismos são activos, quando pretendem convencer a inteligência alheia, encontrar a verdade ou reformar o mundo."
(...)
"É esta a minha moral, ou a minha metafísica, ou eu. Transeunte de tudo - até de minha própria alma -, não pertenço a nada, não desejo nada, não sou nada - centro abstracto de sensações impessoais, espelho caído sentiente virado para a variedade do mundo. Com isto, não sei se sou feliz ou infeliz; nem me importa."
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Excerto do "Livro do Desassossego", Fernando Pessoa (Bernardo Soares),1931?

sábado, 13 de setembro de 2008

Sobre a morte

...«Não se pode estar morto enquanto as coisas que nós alterámos não morrerem. Os nossos efeitos são a única evidência da nossa vida. Enquanto perdurar nem que seja uma recordação dolorosa, uma pessoa não pode ser amputada, morta. E pensou: "É um processo lento e demorado, isto de uma pessoa morrer. Mata-se uma vaca, e ela morre assim que se lhe comer a carne; mas a vida do homem morre como morre a vibração num charco tranquilo, em pequenas ondas, alastrando e crescendo até à quietude".»...
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John Steinbeck, "A um deus desconhecido", cap. 21.

terça-feira, 26 de agosto de 2008

"Descobre por ti mesmo quais são os bens e ideais que não desejas. Ao saberes o que não desejas, por eliminação, irás aliviar a mente, e só então esta entenderá o essencial que está sempre ao seu alcance".
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Krishnamurti

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Ler e não ler, segundo Henry Miller

"Quanto mais escrevemos, menos os livros nos estimulam. Lemos para corroborar, isto é, para apreciar os nossos próprios pensamentos expressos nas variadas formas alheias.
Durante a juventude, o nosso apetite, tanto pela experiência pura como pelos livros, é descontrolado. Onde houver fome excessiva, e não mero apetite, tem de haver uma razão vital para isso. É por demais evidente que o modo de vida actual não nos oferece alimento condigno. Se assim fosse, estou certo de que leríamos menos, trabalharíamos menos e nos empenharíamos menos. Não precisaríamos de substitutos, não aceitaríamos sucedâneos para a nossa maneira de viver. Isto aplica-se a todos os domínios: comida, sexo, viagens, religião, aventura. Damos início à viagem com o pé esquerdo. Percorremos a estrada larga com um pé na sepultura. Não temos objectivo nem desígnio definidos, nem a liberdade de não ter objectivo nem desígnio. Somos, na maioria, sonâmbulos, e morremos sem sequer abrir os olhos.
Se as pessoas apreciassem profundamente tudo o que lêem, não haveria qualquer desculpa para falar assim. Mas lêem como vivem - sem objectivo, ao acaso, de uma forma débil e vacilante. Se já estão a dormir, o que quer que leiam só as faz mergulhar num sono mais profundo. Se se encontram apenas num estado de letargia, tornam-se mais letárgicas. Se são preguiçosas, ficam-no ainda mais. E assim sucessivamente. Apenas o homem que está bem desperto é capaz de apreciar um livro, de extrair dele o que é vital. Um indivíduo desses aprecia o que quer que penetre na sua experiência, e, a não ser que eu esteja terrivelmente enganado, não faz distinção entre a experiência que a leitura lhe proporciona e as experiências múltiplas do quotidiano. O homem que aprecia plenamente o que lê, ou faz, ou mesmo o que diz, ou simplesmente o que sonha ou imagina, beneficia ao máximo. Aquele que procura lucrar, mediante uma forma ou outra de disciplina, ilude-se a si mesmo. É por estar firmemente convencido disto que abomino a publicação de listas de livros para aqueles que estão a dar os primeiros passos na vida. Segundo creio, as vantagens que se podem extrair deste tipo de auto-educação são ainda mais dúbias do que as supostas vantagens obtidas mediante os métodos de educação correntes. A maioria dos livros apresentados nessas listas não pode ser compreendida e apreciada antes de uma pessoa ter vivido e pensado por si mesma. Mais cedo ou mais tarde, toda essa porcaria tem de ser regurgitada". ...
"A verdade é que ultimamente deixámos de ter grandes autores para os quais nos possamos voltar - caso estejamos em busca de verdades eternas. Rendemo-nos ao transitório. As nossas esperanças, débeis e vacilantes, parecem estar completamente centradas nas soluções políticas. Os homens afastam-se dos livros, o que quer dizer dos escritores, dos "intelectuais". É bom sinal - desde que substituam os livros pela vida! Mas será isto que se passa? Nunca o medo da vida foi tão intenso. O medo da vida substitui o medo da morte. Vida e morte passaram a significar o mesmo. No entanto, nunca a vida encerrou tantas promessas como agora. Nunca na história do homem a questão foi tão clara - a opção entre a criação e o aniquilamento. Sim, deitem fora os vossos livros! Especialmente se eles encobrem a questão em causa. Nunca a própria vida foi mais um livro aberto do que no momento presente. Mas, seremos nós capazes de ler o Livro da Vida?
(-Que estás a fazer aí no chão?
-Estou a ensinar o alfabeto às formigas.)"
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Henry Miller, Os Livros da Minha Vida, Antígona, Lisboa, 2004, p.148/9 e 157/8, (original 1969).

domingo, 24 de agosto de 2008

"Cada vez mais dou-me conta de que sempre levei uma vida contemplativa. Sou uma espécie de Brâmane ao contrário, meditando em si mesmo no meio da barafunda, que, com toda a sua força, se disciplina e desdenha da existência. Ou o pugilista com a sua sombra, que, furiosamente, calmamente, socando no vazio, vigia a sua forma. Que virtuosismo, que ciência, que equilíbrio, a facilidade com que acelera! Mais tarde, temos de aprender a aceitar o castigo com igual imperturbabilidade. Pela minha parte, sei como aceitar o castigo, com que serenidade produzo frutos e com que serenidade me destruo: em suma, actuo no mundo, não tanto para meu prazer, mas para dar prazer aos outros (são os reflexos dos outros que me dão prazer, não os meus). Só uma alma cheia de desespero pode atingir a serenidade, e, para nos sentirmos desesperados, temos de ter amado muito e de ainda amar o mundo".
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Blaise Cendrars

sábado, 23 de agosto de 2008

Em 1880, Dostoievski fez um discurso sobre "A Missão da Rússia", no qual afirmou: "Tornarmo-nos verdadeiros russos é tornarmo-nos irmãos de todos os seres humanos, homens universais... O nosso futuro reside na Universalidade, não conquistada pela violência, mas pela força derivada do nosso grande ideal - a união de toda a humanidade".
O que é feito destes russos?

terça-feira, 5 de agosto de 2008

Precisamos da liberdade para impedir o Estado de abusar do seu poder, e precisamos do Estado para impedir a liberdade de provocar abusos.
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Karl Popper

quinta-feira, 17 de julho de 2008

Servidões antigas e novas


Devido ao facto de as mulheres e os escravos pertencerem a um só grupo e viverem juntos, e de nenhuma mulher, nem mesmo a esposa do chefe da casa, viver entre os seus iguais - outras mulheres livres - dá-nos a noção de que a posição social dependia muito menos do nascimento do que da ocupação ou função. Esta ideia está patente no livro de H. Wallon, Histoire de l'esclavage dans l'antiquité, I, p. 77 segs (1847), que fala de uma "confusion des rangs, ce partage de toutes les fonctions domestiques": "Les femmes... se confondaient avec leurs esclaves dans les soins habituels de la vie intérieure. De quelque rang qu'elles fussent, le travail était leur apanage, comme aux hommes la guerre".
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"O último estágio de uma sociedade de operários, que é a sociedade de detentores de empregos, requer dos seus membros um funcionamento puramente automático, como se a vida individual tivesse realmente sido afogada no processo vital da espécie, e a única decisão activa exigida do indivíduo fosse deixar-se levar, por assim dizer, abandonar a sua individualidade, as dores e as penas de viver ainda sentidas individualmente, e aquiescer num tipo funcional de conduta entorpecida e «tranquilizada»."
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Hannah Arendt, A Condição Humana, Relógio d'Água, 2001, p.392 (o original data de 1958)

quarta-feira, 2 de julho de 2008

A pobreza força os homens livres a fazer muitas coisas servis e mesquinhas.
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Demóstenes, Orationes 57.45

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A sociedade ideal é um estado de coisas no qual todas as actividades humanas derivam tão naturalmente da "natureza" humana como a secreção de cera deriva das abelhas para fazer a colmeia.
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Karl Marx, Wage, Labour and Capital, p. 77

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Pois não vedes que a natureza clama por duas coisas apenas, um corpo livre da dor e uma mente livre de preocupações...?
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Lucrécio, The Nature of the Universe, ed. Penguin, p. 60

sábado, 28 de junho de 2008

Não ter passado retira de antemão ao Futuro o seu peso de surpresa e, mesmo, qualquer significação.
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Eduardo Lourenço, Nós como Futuro, Assírio e Alvim, 1997, p.11

sexta-feira, 13 de junho de 2008

Homenagem a Fernando Pessoa (13/06/1888-30/11/1935)


"LISBON REVISITED"
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Não: Não quero nada.
Já disse que não quero nada.
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Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.
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Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem
conquistas das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) -
Das ciências, das artes, da civilização moderna!
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Que mal fiz eu aos deuses todos?
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Se têm a verdade, guardem-na!
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Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?
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Não me macem, por amor de Deus!
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Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?
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Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja de companhia!
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Ó céu azul - o mesmo da minha infância -,
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflecte!
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Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.
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Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!
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Álvaro de Campos - 1923
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(in Fernando Pessoa, O Rosto e as Máscaras, Antologia organizada por David Mourão-Ferreira, Edições Ática, Lisboa, 2.ª edição, 1979)

terça-feira, 6 de maio de 2008

John Gray (sugestão de leitura)

Os que gostam de ser surpreendidos, desafiados, desassossegados intelectualmente, podem ler SOBRE HUMANOS E OUTROS ANIMAIS, de John Gray, Ed. Lua de Papel, 2007.
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Para satisfazer muitos pedidos, aqui ficam alguns excertos desta obra:

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Página 52 - "Se acreditarmos que os seres humanos são animais, não poderemos admitir a existência de qualquer coisa que se assemelhe a uma história da humanidade, mas apenas a das vidas dos seres humanos particulares."
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Página 99 - "Não somos autores das nossas vidas; não somos sequer autores parciais dos acontecimentos que nos marcam mais profundamente. Quase tudo o que é de importância maior nas nossas vidas é não-escolhido. O tempo e o lugar em que nascemos, os nossos pais, a primeira língua que falamos: todas estas circunstâncias são fruto do acaso e não de uma escolha."
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Página 132 - "Um jardim zoológico é uma janela mais adequada do que um mosteiro para quem queira contemplar a vida humana."
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Página 149 - "Na pré-história evolutiva, a consciência aparece como um efeito secundário da linguagem. Hoje, é um subproduto dos média."
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Página 150 - "Hoje todos somos modernizadores. Não fazemos ideia do que significa ser-se moderno, mas temos a certeza de que essa qualidade nos garante um futuro."................."Os campos de extermínio são tão modernos como a cirurgia a laser."
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Página 168 - "Procurar um sentido na vida talvez seja útil como terapia, mas nada tem a ver com a vida do espírito. A vida espiritual não implica uma busca de sentido, mas uma libertação dessa busca."

sábado, 19 de abril de 2008

Esta Língua que nos divide

Pressupostos:
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O conhecimento serve para a prática humana, directa ou indirectamente, e a relação do conhecimento com a prática opera-se pela linguagem. A linguagem, em unidade com o pensamento, contém em si e fixa a experiência e o saber das gerações passadas. A linguagem influencia o nosso modo de percepção da realidade, ou seja, é um reflexo específico da realidade e, ao mesmo tempo, é criadora da nossa imagem do mundo. Enquanto não for modificado o sistema categorial e gramatical de uma língua, esta define um modo determinado da percepção da realidade pelos membros do mesmo grupo linguístico.
Apesar de conservadoras, as línguas não são imutáveis. Sofrem modificações constantes, não só devido às mudanças na vida social, como aos contactos com as culturas estrangeiras, enriquecendo o seu léxico. O progresso da civilização, que implica um progresso nos contactos entre as culturas humanas, age progressivamente sobre o nivelamento das diferenças entre os aparelhos conceptuais das diferentes línguas, embora menos sobre a gramática e os seus elementos representativos e afectivos.
A educação, que é sempre uma educação social concreta num meio-ambiente e num grupo social determinado, transmite ao indivíduo humano o saber social acumulado, não só sob a forma da linguagem, na sua unidade com o pensamento, mas também sob a forma dos sistemas de valores e, por consequência, dos estereotipos dos comportamentos humanos.
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A reforma da língua portuguesa:
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1) As alterações acordadas ao modo como se escrevem algumas palavras em Portugal, não afectando o seu significado nem, em princípio, o nosso modo de percepção da realidade, afectam a representação mental que cada um tem das palavras e tudo o que isso implica. Quem, ao ler um texto na língua escrita no Brasil, sinta agonia, irritação, alergia cutânea, provavelmente nunca conseguirá escrever desse modo sem ficar doente, porque também é uma questão de estética, de bom senso e de bom gosto. Mais facilmente utilizariam a língua franca actual.
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2) Se a língua portuguesa se formou com base no latim, como todas as línguas indo-europeias, e atravessou diversas fases até à sua fixação actual (romance, galaico-português, etc.), e ao ser exportada para o Brasil, onde sofreu modificações contínuas num processo de "corte e costura criativo" até já não haver praticamente relação com a língua que lhe deu origem, o latim, onde encontramos o porquê da necessidade de alguns "c" e "p" mudos, é de língua portuguesa que ainda estamos a tratar?
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Vamos suspender a evolução natural e criteriosa da ortografia de uma língua culta europeia, que é criadora e reflexo da nossa mundividência específica, e trocá-la pela de outro país por decisão política?
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(Bibliografia: Adam Schaff, Linguagem e Conhecimento, Livraria Almedina, 1974)
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domingo, 3 de fevereiro de 2008

O dia duplamente triste: 1 de Fevereiro de 2008

Quando no passado dia 1 de Fevereiro não houve acordo parlamentar para aprovação de um voto de pesar pelo assassínio de um Chefe do Estado Português perpetrado no mesmo dia em 1908, Rei ou Presidente é indiferente ao caso, ocorreu-me a afirmação do Fausto de Goethe: "Aquilo que de teus pais herdaste/Merece-o para que o possuas" ("Was du ererbt von deinen Vätern hast/Erwirb es um es zu besitzen").
Goethe disse também que ser elitista significa ser respeitador: respeitador do divino, da natureza, dos nossos congéneres seres humanos e, assim, da nossa própria dignidade humana.
Aqueles parlamentares, infelizmente, não constituem qualquer elite, no sentido de Goethe, nem possuem a herança que os nossos pais deixaram porque não a merecem. A ignorância venceu uma vez mais.
George Steiner, nosso contemporâneo, já se apercebeu do caminho que levamos ao afirmar que este é um "período de fascismo da vulgaridade", de "economia do conhecimento", e em que "o conhecimento cultural e a reflexão filosófico-cultural estão a debilitar-se, ou mesmo a tornar-se impossíveis, mais frequentemente do que nos apercebemos".
Triste. Triste.
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segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Quem somos e o que queremos?

O que se convencionou designar por "características dos portugueses" (a inveja destrutiva, a mesquinhez, a desconfiança, a aversão à mudança, ao planeamento e ao rigor, a esperteza saloia, o preconceito, a ausência de iniciativa, o fatalismo, a autocomiseração, o provincianismo, etc.) estarão impressas no nosso código genético? Ou não passarão de falhas no nosso carácter originadas pelo modo como fomos "educados" ao longo dos séculos, e que podem ser alteradas?
Vejamos o que disse Antero de Quental numa conferência, em 1871, publicada no livro Causas da Decadência dos Povos Peninsulares, pela Ulmeiro, 1982, 4ª edição, colecção Oitocentos anos de História:
Na página 27 podemos ler:
"A Europa culta engrandeceu-se, nobilitou-se, subiu sobretudo pela ciência. Foi sobretudo pela falta de ciência que nós descemos, que nos degradámos, que nos anulámos."
E nas páginas 66 e 67 lê-se:
"Fomos os Portugueses intolerantes e fanáticos dos séculos XVI, XVII e XVIII, somos agora os Portugueses indiferentes do século XIX. Por outro lado, se o poder absoluto da monarquia acabou, persiste a inércia política das populações, a necessidade (e o gosto talvez) de que as governem... Entre o senhor rei de então e os senhores influentes de hoje, não há tão grande diferença: para o povo é sempre a mesma servidão. Éramos mandados, somos agora governados: os dois termos quase que se equivalem. Se a velha monarquia desapareceu, conservou-se o velho espírito monárquico: é quanto basta para não estarmos muito melhor do que os nossos avós. Finalmente, do espírito guerreiro da nação conquistadora, herdámos um invencíval horror ao trabalho e um íntimo desprezo pela indústria. Os netos dos conquistadores de dois mundos podem, sem desonra, consumir no ócio o tempo e a fortuna, ou mendigar pelas secretarias um emprego: o que não podem, sem indignidade, é trabalhar! uma fábrica, uma oficina, uma exploração agrícola ou mineira, são coisas impróprias da nossa fidalguia. Por isso as melhores indústrias nacionais estão nas mãos dos estrangeiros, que com elas se enriquecem, e se riem das nossas pretensões. Contra o trabalho manual, sobretudo, é que é universal o preconceito: parece-nos um símbolo servil! Por ele sobem as classes democráticas em todo o mundo, e se engrandecem as nações; nós preferimos ser uma aristocracia de pobres ociosos, a ser uma democracia próspera de trabalhadores. É o fruto que colhemos duma educação secular de tradições guerreiras e enfáticas!
Dessa educação, que a nós mesmos demos durante três séculos, provêm todos os nossos males presentes. As raízes do passado rebentam por todos os lados no nosso solo: rebentam sob a forma de sentimentos, de hábitos, de preconceitos. Gememos sob o peso dos erros históricos. A nossa fatalidade é a nossa história.
Que é pois necessário para readquirirmos o nosso lugar na civilização? para entramos outra vez na comunhão da Europa culta? É necessário um esforço viril, um esforço supremo: quebrar resolutamente com o passado. Respeitemos a memória dos nossos avós, memoriemos piedosamente os actos deles, mas não os imitemos.... A esse espírito mortal oponhamos francamente o espírito moderno....."
Agora, em 2008, 137 anos depois de Antero ter proferido esta palestra, que já englobava 300 anos de História, olhemo-nos ao espelho e tentemos ver se, e em que, mudámos entretanto. Para nos ajudar a ver a imagem com maior nitidez podemos socorrer-nos dos diversos debates radiofónicos que se fazem diariamente e em que os ouvintes opinam sobre temas propostos. Mudámos, ou mantivemos os traços psicológicos? Apesar do progresso tecnológico, continuamos ou não de braço dado com a mediocridade e a ignorância?
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