sábado, 19 de abril de 2008

Esta Língua que nos divide

Pressupostos:
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O conhecimento serve para a prática humana, directa ou indirectamente, e a relação do conhecimento com a prática opera-se pela linguagem. A linguagem, em unidade com o pensamento, contém em si e fixa a experiência e o saber das gerações passadas. A linguagem influencia o nosso modo de percepção da realidade, ou seja, é um reflexo específico da realidade e, ao mesmo tempo, é criadora da nossa imagem do mundo. Enquanto não for modificado o sistema categorial e gramatical de uma língua, esta define um modo determinado da percepção da realidade pelos membros do mesmo grupo linguístico.
Apesar de conservadoras, as línguas não são imutáveis. Sofrem modificações constantes, não só devido às mudanças na vida social, como aos contactos com as culturas estrangeiras, enriquecendo o seu léxico. O progresso da civilização, que implica um progresso nos contactos entre as culturas humanas, age progressivamente sobre o nivelamento das diferenças entre os aparelhos conceptuais das diferentes línguas, embora menos sobre a gramática e os seus elementos representativos e afectivos.
A educação, que é sempre uma educação social concreta num meio-ambiente e num grupo social determinado, transmite ao indivíduo humano o saber social acumulado, não só sob a forma da linguagem, na sua unidade com o pensamento, mas também sob a forma dos sistemas de valores e, por consequência, dos estereotipos dos comportamentos humanos.
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A reforma da língua portuguesa:
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1) As alterações acordadas ao modo como se escrevem algumas palavras em Portugal, não afectando o seu significado nem, em princípio, o nosso modo de percepção da realidade, afectam a representação mental que cada um tem das palavras e tudo o que isso implica. Quem, ao ler um texto na língua escrita no Brasil, sinta agonia, irritação, alergia cutânea, provavelmente nunca conseguirá escrever desse modo sem ficar doente, porque também é uma questão de estética, de bom senso e de bom gosto. Mais facilmente utilizariam a língua franca actual.
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2) Se a língua portuguesa se formou com base no latim, como todas as línguas indo-europeias, e atravessou diversas fases até à sua fixação actual (romance, galaico-português, etc.), e ao ser exportada para o Brasil, onde sofreu modificações contínuas num processo de "corte e costura criativo" até já não haver praticamente relação com a língua que lhe deu origem, o latim, onde encontramos o porquê da necessidade de alguns "c" e "p" mudos, é de língua portuguesa que ainda estamos a tratar?
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Vamos suspender a evolução natural e criteriosa da ortografia de uma língua culta europeia, que é criadora e reflexo da nossa mundividência específica, e trocá-la pela de outro país por decisão política?
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(Bibliografia: Adam Schaff, Linguagem e Conhecimento, Livraria Almedina, 1974)
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1 comentário:

Paulo disse...

Provavelmente, o problema estará apenas nessa "agonia, irritação, alergia cutânea" que sente ao ler "um texto na língua escrita no Brasil", o que é uma coisa que deriva apenas do seu gosto pessoal. O Vasco Graça Moura também se deve irritar muito, aposto. A ortografia é apenas a representação, a codificação duma língua. É muito importante, obviamente, mas no limite até podia ser conseguida com outro alfabeto que a língua era a mesma. O turco, por exemplo, não se alterou quando abandonou os carateres arábicos e o português também não se vai alterar por desaparecerem uma meia dúzia de consoantes que não estão lá a fazer nada. Deste ponto de vista, é um problema sem qualquer sentido e de muito pequena monta. Tão pequena, que no comentário usei até aqui mais de cem palavras e só uma foi alterada, apesar de até admitir dupla grafia: caráter, carácter, carateres, caracteres. Como digo caráter e não caráqueter, optei pela nova grafia. Politicamente, o Acordo já é de grande monta e alcance, porque devemos ir na frente com os brasileiros, para não ficarmos atrás como os galegos.