quinta-feira, 29 de março de 2012

Vítor Oliveira Jorge: Perda


«Era uma vez um homem que perdera temporariamente o futuro, de forma tão inesperada quanto a que pode acontecer com as chaves de casa, ou do carro. Mas perder o futuro, mesmo temporariamente, é complicado, porque não se pode obter uma cópia para usar de novo. Não está nos perdidos e achados. Não se pode encontrar facilmente nenhum culpado, nem o próprio, nem os que o agridem, ou foram agredindo, de forma mais ou menos insidiosa. O homem que perde, mesmo que temporariamente, o futuro, fica entregue aos objectos. Estes aparecem-lhe como figuras indecifráveis. Não tem descanso dia e noite, mesmo que conheça e viva intensamente o mais extremo amor e ternura, mesmo que faça tudo para ser feliz, mesmo que tenha momentos extraordinários. Na base, no fundo, ou lá num sítio indefinível como é costume pensá-lo, este homem paira no vazio. Este homem tem um certo medo desse vazio, de não conseguir suportar a ausência de si próprio que o futuro perdido lhe deixou. Este homem está tolhido. Está nu e está pobre, o seu corpo tem momentos de grande veemência, mas outros em que lhe apetecia descansar para sempre. Este homem não sabe o que dizer, parece que tudo o que diz é apenas o eco do que pensou antes, dentro de uma caixa oca. Este homem tem medo do confronto, este homem sem futuro é um menino sem pais. Órfão de si mesmo. E no entanto fascinado e inquieto perante os objectos. Que lhe aparecem por toda a parte, dizendo-lhe: nós somos o passado, um passado onde tu não estiveste. E o homem tem medo, medo de não voltar a sentir-se no presente, pleno e vigoroso, e com um futuro tão certo como as chaves de casa na mão. Medo de se tornar um sem-abrigo, no sentido mais íntimo em que se pode ser um sem-abrigo.
Então o homem que perdeu temporariamente o futuro instou junto de muitos guichets, e entidades, e pessoas: dêem-me por favor um futuro, ajudem-me a reencontrar o meu futuro, um futuro que não tenha nada a ver com este mundo hostil e vazio, com esta realidade cheia de arestas cortantes, com estas funções que se me exigem, com esta alegria que se me espera, com esta normalidade que é suposto ter, com esta vontade de todos os dias ir para o espectáculo da vida e ser um bom actor.
O homem que perdera temporariamente o futuro encostou o rosto à face acolhedora, incondicionalmente acolhedora, e ouviu dizer: protege-me, ajuda-me, sê forte e dá-me um futuro a mim também, estou cansada de não saber bem para onde ir, também eu.
E aquele homem pensou que lhe tinha surgido a primeira e talvez única tarefa verdadeiramente urgente, depois de perder tudo, tudo, e lançou-se com acrescida convicção a essa tarefa, ainda totalmente atordoado, mas com o peito exposto à mão ardente, à sua festa reconfortante, e calçou finalmente as meias e os sapatos para caminhar para o momento seguinte. Amo-te, ouviu dizer ainda. E pareceu-lhe confirmada a tarefa que afinal, quem sabe, o esperava desde que nascera.

voj loures 18.3.2012»
Vítor Oliveira Jorge

J. C. Bach: Sinfonia Concertante in A major (W C34)

quarta-feira, 21 de março de 2012

W. B. Yeats: Quando fores velha


Quando fores velha, grisalha, vencida pelo sono,
Dormitando junto à lareira, toma este livro,
Lê-o devagar, e sonha com o doce olhar
Que outrora tiveram teus olhos, e suas sombras profundas;

Muitos amaram os momentos de teu alegre encanto,
Muitos amaram essa beleza com falso ou sincero amor,
Mas apenas um homem amou tua alma peregrina,
E amou as mágoas do teu rosto que mudava;

Inclinada sobre o ferro incandescente,
Murmura, com alguma tristeza, como o Amor te abandonou
E em largos passos galgou as montanhas
Escondendo o rosto numa imensidão de estrelas.

W. B. Yeats  

in Poemas, Assírio & Alvim, Colecção Gato Maltês, Lisboa, 1988, p. 17, trad. de José Agostinho Baptista

Bach: Aria "Erbarme dich", pelo contratenor Andreas Scholl



Bach nasceu a 21 ou a 31 de Março de 1685, conforme o calendário que se adopte, o Juliano ou o Gregoriano.

terça-feira, 13 de março de 2012

W. B. Yeats: Com o tempo a sabedoria

 
Embora muitas sejam as folhas, a raiz é só uma;
Ao longo dos enganadores dias da mocidade,
Oscilaram ao sol minhas folhas, minhas flores;
Agora posso murchar no coração da verdade.


W. B. Yeats (13/06/1865 - 28/01/1939)

in Poemas, Assírio & Alvim, Colecção Gato Maltês, Lisboa, 1988, p. 37

Vivaldi: Vedro con mio diletto, pelo contratenor Philippe Jaroussky

Ária da ópera "Giustino" (RV717)

segunda-feira, 12 de março de 2012

Fernando Pessoa/ Álvaro de Campos: Os emigrados


Só nas grandes cidades desamigas,
Sem falar a língua que se fala nem a que se pensa,
Mutilados da relação com os outros,
Que depois contarão na pátria os triunfos da sua estada.
Coitados dos que conquistam Londres e Paris!
Voltam ao lar sem melhores maneiras nem melhores caras
Apenas sonharam de perto o que viram –
Permanentemente estrangeiros.
Mas não rio deles. Tenho eu feito outra coisa com o ideal?
E o propósito que uma vez formei num hotel, planeando a legenda?
É um dos pontos negros da biografia que não tive.


Fernando Pessoa/ Álvaro de Campos 

in Poesia de Álvaro de Campos, Assírio & Alvim, Lisboa, 2002, Vol. I, p. 185

sexta-feira, 2 de março de 2012

Mia Couto: Ser que nunca fui


Começo a chorar
do que não finjo
porque me enamorei
de caminhos
por onde não fui
e regressei
sem ter nunca partido
para o norte aceso
no arremesso da esperança

Nessas noites
em que de sombra
me disfarcei
e incitei os objectos
na procura de outra cor
encorajei-me
a um luar sem pausa
e vencendo o tempo que se fez tarde
disse: o meu corpo começa aqui
e apontei para nada
porque me havia convertido ao sonho
de ser igual
aos que não são nunca iguais

Faltou-me viver onde estava
mas ensinei-me
a não estar completamente onde estive
e a cidade dormindo em mim
não me viu entrar
na cidade que em mim despertava

Houve lágrimas que não matei
porque me fiz
de gestos que não prometi
e na noite abrindo-se
como toalha generosa
servi-me do meu desassossego
e assim me acrescentei
aos que sendo toda a gente
não foram nunca como toda a gente
Mia Couto, in Raiz de orvalho e outros poemas