sexta-feira, 2 de março de 2012

Mia Couto: Ser que nunca fui


Começo a chorar
do que não finjo
porque me enamorei
de caminhos
por onde não fui
e regressei
sem ter nunca partido
para o norte aceso
no arremesso da esperança

Nessas noites
em que de sombra
me disfarcei
e incitei os objectos
na procura de outra cor
encorajei-me
a um luar sem pausa
e vencendo o tempo que se fez tarde
disse: o meu corpo começa aqui
e apontei para nada
porque me havia convertido ao sonho
de ser igual
aos que não são nunca iguais

Faltou-me viver onde estava
mas ensinei-me
a não estar completamente onde estive
e a cidade dormindo em mim
não me viu entrar
na cidade que em mim despertava

Houve lágrimas que não matei
porque me fiz
de gestos que não prometi
e na noite abrindo-se
como toalha generosa
servi-me do meu desassossego
e assim me acrescentei
aos que sendo toda a gente
não foram nunca como toda a gente
Mia Couto, in Raiz de orvalho e outros poemas

4 comentários:

Olinda Melo disse...

...e eu confesso-me enamorada deste poema, desta outra de escrever de Mia Couto.

:)

Olinda

Olinda Melo disse...

...e eu confesso-me enamorada deste poema, desta outra de escrever de Mia Couto.

:)

Olinda

Maria Josefa Paias disse...

Obrigada, Olinda, e bom-fim-de-semana! :)

Mar Arável disse...

Um dia seremos de novo

crianças
para o mar despertar nos nossos olhos