domingo, 30 de janeiro de 2011

Fernando Pessoa/ Alberto Caeiro - "Falas de civilização, e de não dever ser..."

Falas de civilização, e de não dever ser,
Ou de não dever ser assim.
Dizes que todos sofrem, ou a maioria de todos,
Com as cousas humanas postas desta maneira.
Dizes que, se fossem diferentes, sofreriam menos.
Dizes que, se fossem como tu queres, seria melhor.
Escuto sem te ouvir.
Para que te quereria eu ouvir?
Ouvindo-te nada ficaria sabendo.
Se as cousas fossem diferentes, seriam diferentes: eis tudo.
Se as cousas fossem como tu queres, seriam só como tu queres.
Ai de ti e de todos que levam a vida
A querer inventar a máquina de fazer felicidade!

Alberto Caeiro, Poemas Inconjuntos

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Nietzsche - ("o nojo do após-mesa")

«Mas o que é que te aconteceu?» - «Não sei», disse ele hesitante; «talvez as harpias tenham voado sobre a minha mesa.» Acontece hoje, de vez em quando, um homem pacato, comedido, reservado, tornar-se, de repente, furioso, partir os pratos, virar a mesa, gritar, berrar, ofender todo o mundo - e, por fim, afastar-se envergonhado, furioso consigo próprio. Para onde? Para quê? Para morrer de fome? Para sufocar nas suas recordações? Quem tiver os apetites de uma alma elevada e requintada, e só raras vezes encontrar a sua mesa posta e a comida pronta, correrá, em qualquer altura, grande perigo: mas hoje, ele é extraordinário. Lançado numa época barulhenta e plebeia, com a qual não quer comer do mesmo prato, facilmente pode perecer de fome e sede ou se, finalmente apesar de tudo, «se servir» - morrer de um nojo repentino. Nós todos, verosimilmente, já comemos em mesas onde não tínhamos lugar; e precisamente os mais espirituais de entre nós, que são os mais difíceis de alimentar, conhecem aquela perigosa «dispepsia» que resulta de repentinamente nos apercebermos e ficarmos desiludidos com a comida e com a companhia à mesa - o nojo do «após-mesa».

F. Nietzsche, Para Além do Bem e do Mal, Guimarães, 1978, p.210

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Eufrázio Filipe - "Sombras Vertebradas"

Já os cães tinham ladrado tudo
quando os pássaros se recolheram
em coro nos jacarandás
e tu chegavas alada
da ciranda
para repousar no parapeito
da minha janela

Aqui tão perto ressoavam
os meus silêncios preferidos
nas marés desgrenhadas

os teus olhos de púrpura
recolhidos em ânforas
numa feira de barro

para ficares mais leve de palavras

Sereníssima afloraste o velho alaúde

mas foi da escarpa onde te vejo
que nunca saberei quem és
a projectar réstias de sol
nas sombras vertebradas

que movem os teus dedos

Eufrázio Filipe

Sombras Vertebradas, em Mar Arável

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Eugénio de Andrade - "Nada"

Nada, nem sequer o Verão
está completo. Menos ainda o colar
de sílabas que, desvelado,
te ponho à roda da cintura.
Nunca me pediste mais, nunca 
te dei outra coisa.
Quando juntamos as mãos esquecemos
que somos culpados da nossa inocência.
E sorrimos, alheios
ao sol que declina, à estrela
do norte que sabemos no fim.
O privilégio da vida é este
silêncio musical que do teu olhar
cai nos meus olhos
e regressa a ti acrescentado
pela luz da manhã varrendo o mar.

Eugénio de Andrade

(19/01/1923-13/06/2005)

domingo, 16 de janeiro de 2011

Fernando Pessoa / Ricardo Reis "São plácidas todas as horas que nós perdemos"

Mestre, são plácidas
Todas as horas
Que nós perdemos,
Se no perdê-las,
Qual numa jarra,
Nós pomos flores.

Não há tristezas
Nem alegrias
Na nossa vida.
Assim saibamos,
Sábios incautos,
Não a viver,

Mas decorrê-la,
Tranquilos, plácidos,
Lendo as crianças
Por nossas mestras,
E os olhos cheios
De Natureza...

À beira-rio,
À beira-estrada, 
Conforme calha,
Sempre no mesmo
Leve descanso
De estar vivendo.

O tempo passa,
Não nos diz nada.
Envelhecemos.
Saibamos, quase
Maliciosos, 
Sentir-nos ir.

Não vale a pena
Fazer um gesto.
Não se resiste
Ao deus atroz
Que os próprios filhos
Devora sempre.

Colhamos flores.
Molhemos leves
As nossas mãos
Nos rios calmos,
Para aprendermos
Calma também.

Girassóis sempre
Fitando o sol,
Da vida iremos 
Tranquilos, tendo
Nem o remorso
De ter vivido.

Odes/ Ricardo Reis

(Na imagem: Fernando Pessoa desenhado por Almada Negreiros)

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Al Berto - "Há-de flutuar uma cidade no crepúsculo da vida"

No dia em que o poeta Al Berto completaria 63 anos (11/01/1948-13/06/1997), um poema dito pelo próprio, com fundo musical de  Rodrigo Leão. Sugiro também a leitura de um texto  de Teresa Sá Couto, de 2/01/2009, na Orgia Literária, sobre o livro "O Medo" publicado pela Assírio & Alvim, em 2000.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011