sábado, 28 de fevereiro de 2009

Fernando Savater em "Convite à Ética"

«Em última análise, os valores do homem provêm dos - e assentam nos - seus anseios, ou, se se preferir, nos seus apetites. A tradição canónica distinguia três tipos de apetites humanos, quer dizer, três domínios em que os homens anseiam apaixonadamente: libido sentiendi, libido cognoscendi e libido dominandi, o apetite dos sentidos e das sensações, o do conhecimento e o da dominação e da ordem. É daí que provém tudo o que vale para o homem: verdade, saúde, serenidade, ternura, justiça, beleza, curiosidade, inteligência...".
"No campo da criação social, o ideal que corresponde ao que o propósito ético pretende é a democracia. Apesar do termo ter vindo a ser desvirtuado pelo abuso e pela manipulação, não há invenção mais revolucionária no terreno político nem melhor via para que a ética logre subverter o enfeudamento político ao futuro e reivindique a emancipação do presente. Pela mesma razão, nada em política é revolucionário nem subversivo se não for democrático: fora da democracia, tudo é regresso aos métodos mais velhos do mundo, à autocracia, ao terror, ao paternalismo, aos poucos que decidem "porque sabem na verdade o que os outros querem ou o que a pátria ou o povo exigem", e aos muitos que não se atrevem a querer, nem chegam a saber nem a poder decidir. É preciso dizer imediatamente que a democracia é um ideal ou conceito-limite da organização social, não uma fórmula efectivamente existente aqui e agora. Tanto as democracias "populares" como as ocidentais do "mundo livre" estão a uma enorme distância deste ideal, que proclamam e pervertem ao mesmo tempo. A democracia pretende a abolição efectiva das desigualdades de poder, a supressão dos "especialistas" em mandar e o pôr em comum da gestão dos assuntos comunitários, a organização da sociedade de baixo para cima, a eleição de todos os cargos e a elegibilidade para ele de todos os cidadãos, a revogabilidade não excessivamente dilatada dos mandatos, a transparência permanente da administração. Pode dizer-se que este programa equivale em boa medida à dissolução do Estado tal como hoje o conhecemos na sociedade, dissolução que talvez nunca possa ser absoluta nem seria talvez desejável nesses termos, mas cujo limite está hoje tão longe de nós que não o podemos estabelecer a priori
.
Fernando Savater, Convite à Ética