quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Fernando Pessoa/Bernardo Soares

«Em todos os lugares da vida, em todas as situações e convivências, eu fui sempre, para todos, um intruso. Pelo menos, fui sempre um estranho. No meio de parentes, como no de conhecidos, fui sempre sentido como alguém de fora. Não digo que o fui, uma só vez sequer, de caso pensado. Mas fui-o sempre por uma atitude espontânea da média dos temperamentos alheios.
Fui sempre, em toda a parte e por todos, tratado com simpatia. A pouquíssimos, creio, terá tão pouca gente erguido a voz, ou franzido a testa, ou falado alto ou de terça. Mas a simpatia, com que sempre me trataram, foi sempre isenta de afeição. Para os mais naturalmente íntimos fui sempre um hóspede, que, por hóspede, é bem tratado, mas sempre com a atenção devida ao estranho, e a falta de afeição merecida pelo intruso.
Não duvido que tudo isto, da atitude dos outros, derive principalmente de qualquer obscura causa intrínseca ao meu próprio temperamento. Sou porventura de uma frieza comunicativa, que involuntariamente obriga os outros a reflectirem o meu modo de sentir.
Travo, por índole, rapidamente conhecimentos. Tardam-me pouco as simpatias dos outros. Mas as afeições nunca chegam. Dedicações nunca as conheci. Amarem, foi coisa que sempre me pareceu impossível, como um estranho tratar-me por tu.
Não sei se sofra com isto, se o aceite como um destino indiferente, em que não há nem que sofrer nem que aceitar.
Desejei sempre agradar. Doeu-me sempre que me fossem indiferentes. Órfão da Fortuna, tenho, como todos os órfãos, a necessidade de ser objecto da afeição de alguém. Passei sempre fome da realização dessa necessidade. Tanto me adaptei a essa fome inevitável que, por vezes, nem sei se sinto a necessidade de comer.
Com isto ou sem isto a vida dói-me.

Os outros têm quem se lhes dedique. Eu nunca tive quem sequer pensasse em se me dedicar. Servem os outros: a mim tratam-me bem.
Reconheço em mim a capacidade de provocar respeito, mas não afeição. (...)
Julgo à vezes que gozo sofrer. Mas na verdade eu preferiria outra coisa.
Não tenho qualidades de Chefe, nem de sequaz. Nem sequer as tenho de satisfeito, que são as que valem quando essas outras faltem.
Outros, menos inteligentes que eu, são mais fortes. Talham melhor a sua vida entre gente; administram mais habilmente a sua inteligência. Tenho todas as qualidades para influir, menos a arte de o fazer, ou a vontade, mesmo, de o desejar.
Se um dia amasse, não seria amado.
Basta eu querer uma coisa para ela morrer. O meu destino, porém, não tem a força de ser mortal para qualquer coisa. Tem a fraqueza de ser mortal nas coisas para mim.»
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in Livro do Desassossego (texto 429)

5 comentários:

Benjamina disse...

Olá Josefa

Por este texto se conhece a alma de Pessoa. Acredito que seja a mesma de Bernardo Soares. Razão clara, visão límpida, mas coração enevoado, seco de falta de afecto.
Com esta mistura, não admira tamanho desassossego.
Um abraço.

Maria Josefa Paias disse...

Benjamina,
Não esquecer que F. Pessoa disse que Bernardo Soares «era ele menos o raciocínio e a afectividade» (ver meu postal de 28 de Outubro com o título "Minha pátria é a língua portuguesa-contexto desta frase...), e que os heterónimos mais conhecidos como Álvaro de Campos, Alberto Caeiro e Ricardo Reis, demonstram os vários "eus" de Fernando Pessoa (ortónimo) e, este sim, esteve apaixonado por Ofélia.
Assim, o problema com a afectividade, em termos literários, é de Bernardo Soares.
Um abraço.

Mar Arável disse...

Pessoa

o nosso

um ciclo de marés

Maria Ribeiro disse...

PESSOA, minha paixão literária!Mas... como diz "Benjamina", ser de alma seca, que criou belos oxímoros do SER- Não Ser,,, Mas está certa também a MARIA JOSEFA PAIAS... O que eu digo é que ele se esqueceu de que teve o raciocínio activo, a todo o momento do seu SER, mesmo que pensar doesse...
BEIJITO de LUSIBERO

partilha de silêncios disse...

Olá Josefa
Este texto mostra-nos que no estado de solidão em que se encontrava, Pessoa conseguia ter consciência do seu profundo sentimento de desajuste emocional, e sofria com isso.
bjs