«Mas a exclusão, que me impus, dos fins e dos movimentos da vida; a ruptura, que procurei, do meu contacto com as coisas - levou-me precisamente àquilo a que eu procurava fugir. Eu não queria sentir a vida, nem tocar nas coisas, sabendo, pela experiência do meu temperamento em contágio do mundo, que a sensação da vida era sempre dolorosa para mim. Mas ao evitar esse contacto, isolei-me, e, isolando-me, exacerbei a minha sensibilidade já excessiva. Se fosse possível cortar de todo o contacto com as coisas, bem iria à minha sensibilidade. Mas esse isolamento total não pode realizar-se. Por menos que eu faça, respiro; por menos que aja, movo-me. E, assim, conseguindo exacerbar a minha sensibilidade pelo isolamento, consegui que os factos mínimos, que antes mesmo a mim nada fariam, me ferissem como catástrofes. Errei o método de fuga. Fugi, por um rodeio incómodo, para o mesmo lugar onde estava, com o cansaço da viagem sobre o horror de viver ali.
(...) Levei tempo a convencer-me deste lamentável equívoco em que vivo comigo. Convencido dele, fiquei desgostoso, o que sempre me acontece quando me convenço de qualquer coisa, porque o convencimento é em mim sempre a perda de uma ilusão.
Matei a vontade a analisá-la. Quem me tornara a infância antes da análise, ainda que antes da vontade!»
.
in Livro do Desassossego, texto 462
4 comentários:
Maria Josefa,
Este texto dava para fazer uma curta metragem acerca de um homem á volta de si mesmo.
Mas é um "must" habitual na leitura de Pessoa.
Como tenho procurado, ultimamente, qualquer coisa para dia 30 (não me esqueci...) tenho reparado em coisas que não detectei na antiga primeira leitura.
Está a ser muito bom !
Um abraço.
adoro:)
Miguel(T.Mike),
Se só este texto já sugere uma história, e o mesmo sucede com muitos outros, não gostaria de estar na pele de Botelho.
Gosto de saber que está a gostar da releitura.
Um abraço.
Sylvia Beirute,
Muito obrigada pelo seu comentário e pela visita.
Já vou espreitar o seu blogue.
Um abraço.
Enviar um comentário