terça-feira, 16 de novembro de 2010

José Saramago - 88.º aniversário de nascimento (homenagem através de excerto de O Evangelho segundo Jesus Cristo)

«Disse Deus, Haverá uma Igreja, que, como sabes, quer dizer assembleia, uma sociedade religiosa que tu fundarás, ou em teu nome será fundada, o que é mais ou menos o mesmo se nos ativermos ao que importa, e essa Igreja espalhar-se-á pelo mundo até a confins que ainda estão por conhecer, chamar-se-á católica porque será universal, o que, infelizmente, não evitará desavenças e dissensões entre os que te terão como referência espiritual, mais, como já te disse, do que a mim próprio, mas isso será apenas por algum tempo, só uns milhares de anos, porque eu já era antes que tu fosses e sempre o hei-de ser depois que tu deixes de ser o que és e o que serás, Fala claro, interrompeu Jesus, Não é possível, disse Deus, as palavras dos homens são como sombras, e as sombras nunca saberiam explicar a luz, entre elas e a luz está e interpõe-se o corpo opaco que as faz nascer, Perguntei-te pelo futuro, É do futuro que estou a falar, O que quero que me digas é como viverão os homens que depois de mim vierem, Referes-te aos que te seguirem, Sim, se serão mais felizes, Mais felizes, o que se chama felizes não direi, mas terão a esperança duma felicidade lá no céu onde eu eternamente vivo, portanto a esperança de viverem eternamente comigo, Nada mais, Parece-te pouco, viver com Deus, Pouco, muito ou tudo, só se virá a saber depois do juízo final, quando julgares os homens pelo bem e mal que tiverem feito, por enquanto vives sozinho no céu, Tenho os meus anjos e os meus arcanjos, Faltam-te os homens, Pois faltam, e para que eles venham a mim é que tu serás crucificado, Quero saber mais, disse Jesus quase com violência, como se quisesse afastar a imagem que de si mesmo se lhe representara, suspenso de uma cruz, ensanguentado, morto, Quero saber como chegarão as pessoas a crer em mim e a seguir-me, não me digas que será suficiente o que eu lhes disser, não me digas que bastará o que em meu nome disserem depois de mim os que em mim já creiam, dou-te um exemplo, os gentios e os romanos, que têm outros deuses, quererás tu dizer-me que, sem mais nem menos, os trocarão por mim, Por ti não, por mim, Por ti ou por mim, tu próprio dizes que é o mesmo, não joguemos com as palavras, responde à minha pergunta, Quem tiver a fé virá a nós, Assim, sem mais nada, tão simplesmente como acabas de o dizer, Os outros deuses resistirão, E tu lutarás contra eles, por certo, Que disparate, tudo quanto acontece, é na terra que acontece, o céu é eterno e pacífico, o destino dos homens cumprem-no os homens onde estiverem, Dizendo as coisas por claro, mesmo sendo as palavras sombras, vão morrer homens por ti e por mim, Os homens sempre morreram pelos deuses, até por falsos e mentirosos deuses, Podem os deuses mentir, Eles podem, E tu és, de todos, o único e verdadeiro, Único e verdadeiro, sim, E, sendo verdadeiro e único, nem por isso podes evitar que os homens morram por ti, eles que deviam ter nascido para viver para ti, na terra, quero dizer, não no céu, onde não terás, para lhes dar, nenhuma das alegrias da vida. […]»

O Evangelho segundo Jesus Cristo, Editorial Caminho, Lisboa, 1991, pp. 379/80

José Saramago (16/11/1922 - 18/06/2010)

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