«Em Sun City, Arizona, a regra é simples e implacável. Ninguém abaixo dos 55 anos. Crianças e adolescentes só admitidos em caso de visita. Uma cidade de velhos, por conseguinte. Uma cidade privada, reservada aos reformados, cortada do resto do mundo tanto por esta regra de ferro como por um muro, verdadeiro, com postos de controlo, que o separam dos bairros hispânicos vizinhos. Um optimista verá, neste falso espaço urbano, com ruas traçadas em linha recta, quase desertas, onde raros avôzinhos circulam em carrinhos de golfe, um oásis de prosperidade num mundo em crise, uma utopia burguesa saída do sonho do urbanista. Reconhecerá aqui uma variante bizarra, mas uma variante na mesma, do bom "pastoralismo", herdado da escola de arquitectura paisagística inglesa do século XVIII e que desempenhou um enorme papel na constituição da ideologia americana. Verá aí um cruzamento, nada desonroso em si, do espírito de Virgílio e do das Luzes, dos sonhos de regresso à natureza que datam dos primeiros peregrinos e do progressismo de vivendas de que vi, em Lakewood, perto de Los Angeles, o género de paisagem que pode dar e em que tipo de filosofia, igualitária e pioneira, se apoia. A "auto-suficiência" de Emerson, em fundo de velhice sujeita a gueto. O "Walden Pond" de Thoreau, versão fortaleza assediada. Nas cidades planificadas deste tipo, nestas cidadelas saídas do nada e, neste caso, do deserto, talvez um optimista vislumbre uma metamorfose, em pleno século XXI, desse espírito pioneiro, dessa capacidade de "se constituir", por "consentimento mútuo e solene", num "corpo da sociedade política" de que Tocqueville, nas primeiras páginas do seu livro, quando evoca, citando Nathaniel Morton, a criação de Plymouth e das primeiras colónias da Nova Inglaterra, faz a própria essência do projecto democrático. E confesso, entre parênteses, não ter achado completamente ridículo, na noite da minha chegada, o pequeno baile organizado, no Westerners Square Dance Club de Sun City West, por alguns dos colonos do terceiro tipo e da quarta idade - confesso ter encontrado um certo encanto no espectáculo destas quinze ou vinte senhoras, armadas em Scarlett O'Hara, todas com folhos, tutus e vestidos engraçados, a dançarem até perder o fôlego ao som de uma orquestra de bailarico, com os Rhett Butler, o mais novo dos quais tinha 80 anos! O problema, evidentemente, é o resto. Todo o resto. São os blacks, que não se vêem. Os hispânicos que me garantem estarem lá, mas dos quais também não sinto a presença. São os pobres em geral, os grandes excluídos deste sonho de vivendas e incorporated, no sentido literal constituído em corpo, autónomo, logo, autogerido, cuja primeira regra de gestão é só aceitar os casais que provem que têm um capital suficiente para poderem viver até aos cem anos - oficialmente, o objectivo do jogo! - sem risco de cessação de pagamento, logo, de expulsão. O problema é, de facto, o sentimento de ter chegado aqui, com esta tribo de velhos, à derradeira etapa de um processo de segregação social, de que pude, em Los Angeles, observar algumas premissas e que, não conseguindo, afinal, nem manter os pobres nos seus guetos, nem empurrá-los para a periferia da cidade, não conseguindo decidir, como se viu, mais uma vez, em Phoenix, envenenar os caixotes do lixo dos restaurantes para dissuadir os sem-abrigo de virem abastecer-se, ficaria resolvido, com uma guerra frouxa, com a deslocação dos ricos. O problema, em suma, é que isso supõe uma ruptura profunda com a tradição, já não digo de compaixão, mas de civismo, que fez e ainda faz a grandeza deste país. E é o terrível precedente que não pode deixar de criar esta experiência de privatização de um espaço público a favor de uma comunidade que, não dependendo já de Phoenix nem de nenhuma outra autoridade estatal e nacional (o "state-nation", o "station", odiado por Emerson) para os seus impostos, a sua rede viária, as suas tarefas de policiamento ou de administração, parece um pequeno satélite liberto das leis do peso social e nacional. Se aceitarmos isto, digo eu a uma das minhas Scarlett, se não ratificarmos o princípio deste gueto dourado, baseado na pertença a uma classe etária e num nível de rendimentos, em nome de quê iríamos impedir amanhã, a constituição de cidades interditas, desta vez, aos velhos? Ou aos homossexuais? Ou aos judeus? Em nome de quê iríamos resistir à balcanização definitiva do espaço americano que se seguiria? Nada a ver! Responde-me a majorette indignada. Não pode comparar projectos tão horrorosos com uma organização cuja única finalidade é facilitar a vida aos idosos que sufocavam nas grandes cidades. Seja. Vejo bem, com efeito, os pequenos arranjos que o sistema permite na vida de todos os dias: tomadas de corrente colocadas mais alto para evitar que tenham de se baixar muito; tectos com a luz estudada para cansar menos os olhos; campos de golfe; piscinas aquecidas tanto no Verão como no Inverno; sistemas de alarme que ligam a maior parte das casas ao hospital e permitem, em caso de doença, ganhar minutos preciosos que são, nesta idade, muitas vezes fatais - refiro apenas as coisas melhores e tudo isso não é, evidentemente, negligenciável. Mas, ao mesmo tempo... Esta impressão de frieza lúgubre... Estas lareiras artificiais nas casas e estas relvas que parecem de cartão... Esta vida plastificada... Estes moribundos que cheiram a saúde... Este tempo fingido, sem outros acontecimentos notáveis a não ser os bailes, a recolha do lixo que os próprios se obstinam a fazer, tal como as rondas de polícia e, last but not least, fontes de uma excitação incansável, os mortos, os enterros... Deixo Sun City num estado de incerteza extrema, já sem saber se vêm para aqui para se salvarem ou para se condenarem, conjurarem a morte, ou fazerem a prova. De regresso a Phoenix, fico a saber que Del Webb, o inventor deste milagre gelado, deste paraíso com ar de purgatório, deste infantário para a terceira idade onde a própria vida parece ter-se tornado uma doença, aprendeu o seu ofício a construir, depois da guerra, casinos, casernas e campos de internamento para japoneses...»
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in Bernard-Henri Lévy, Vertigem Americana, Caderno, Asa Editores, Lisboa, 1.ª edição, 2007, páginas 163/6.