«A dor é o caminho da consciência, e é por ele que os seres vivos chegam a ter consciência de si. Porque ter consciência de si mesmo, ter personalidade, é saber e sentir-se distinto dos demais seres, e só se chega a sentir esta distinção pelo choque, pela dor maior ou menor, pela sensação do próprio limite. A consciência de si mesmo não passa da consciência da própria limitação. Sinto-me eu mesmo, ao sentir-me que não sou os outros; saber e sentir até onde sou eu, é saber onde deixo de ser, e a partir donde não sou.
E como saber que se existe, não sofrendo nem pouco nem muito? Como volver sobre si, lograr consciência reflexa, senão através da dor?
Quando gozamos, esquecemo-nos de nós próprios, de que existimos, passamos a outro, alienamo-nos. E só nos ensimesmamos, só voltamos a nós próprios, só voltamos a ser nós, pela dor.
Nessun maggior dolore
che ricordarsi del tempo felice
nella miseria
faz dizer Dante a Francesca de Rimini (Inferno, V, 121-123), mas se não há dor maior do que nos recordarmos do tempo feliz na desgraça, não há, em compensação, prazer, em nos recordarmos da desgraça nos tempos da prosperidade.
"A mais acerba dor para o homem é aspirar a muito e não poder ser nada", como diz, segundo Heródoto (liv. IX, cap. 16), um persa a um tebano, num banquete. E assim é. Podemos abarcar tudo ou quase tudo com o conhecimento e o desejo, nada ou quase nada com a vontade. E a felicidade não é a contemplação, não! se essa contemplação significa impotência. E deste choque entre o nosso saber e nosso poder surge a compaixão.
Compadecemo-nos do nosso semelhante, e tanto mais, quanto mais e melhor sentirmos a sua semelhança connosco. E se podemos dizer que é esta semelhança que provoca a nossa compaixão, podemos sustentar também que a nossa provisão de compaixão, pronta a derramar-se sobre todas as coisas, é que nos faz descobrir a semelhança das coisas connosco, o lago comum que nos une com ela, na dor.»
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in Do Sentimento Trágico da Vida, tradução Cruz Malpique, Relógio D'Água, Lisboa, 2007