"Minha pátria é a língua portuguesa" é daquelas frases de Fernando Pessoa/Bernardo Soares que nos habituámos a ouvir por tudo e por nada, e em que muitos a interpretam e usam como um sinal do patriotismo de Pessoa, no sentido corrente deste termo, como amor incondicional a Portugal, quando, lida no seu contexto, a frase quer dizer apenas e só aquilo que diz, que a pátria de Fernando Pessoa/Bernardo Soares é a língua portuguesa! Portugal podia ser invadido ou tomado, desde que não o incomodassem! Mas uma página mal escrita é que ele não suportava!
Senão vejamos este excerto do Livro do Desassossego, texto 259:
(...) «Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon, como o escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.
Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa, vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-ma do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha.»
Posto isto, convirá ter em consideração duas afirmações de Fernando Pessoa (ortónimo), uma que está contida numa carta de 1932 dirigida a João Gaspar Simões, e em que diz que «Bernardo Soares não é um heterónimo mas uma personalidade literária», e outra contida numa carta dirigida a Adolfo Casais Monteiro em 1935, em que diz que «[Bernardo Soares] é um semi-heterónimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu, menos o raciocínio e a afectividade.»
Com este esclarecimento, podemos até dizer que seria mais correcto atribuir sempre a frase «minha pátria é a língua portuguesa» a Bernardo Soares, dada a distinção que o próprio Pessoa faz das respectivas personalidades nestas duas componentes, o raciocínio e a afectividade, que Bernardo Soares não tem como F. Pessoa, pois naquele predominam a emoção e a sensibilidade, a interioridade e os seus estados de alma, o fechamento ao exterior que, de certo modo, o agride.
16 comentários:
Olá Josefa,
Gostei deste detalhe importante, sobre a frase em questão. Li o LIVRO DO DESASSOSSEGO, há alguns anos, cada vez me convenço mais, que tenho que voltar a ler certos livros!...
Beijinhos, Manuela
O nosso poeta, peferia rosas !
Assim o dizia, no seu poema "prefiro rosas, meu amor, à pátria"
Prefiro rosas, meu amor, à pátria
Prefiro rosas, meu amor, à pátria,
E antes magnólias amo
Que a glória e a virtude.
Logo que a vida não me canse, deixo
Que a vida por mim passe
Logo que eu fique o mesmo.
Que importa àquele a quem já nada importa
Que um perca e outro vença,
Se a aurora raia sempre,
Se cada ano com a Primavera
As folhas aparecem
E com o Outono cessam?
E o resto, as outras coisas que os humanos
Acrescentam à vida,
Que me aumentam na alma?
Nada, salvo o desejo de indif'rença
E a confiança mole
Na hora fugitiva.
Heterónimo Ricardo Reis
01/06/1916
bjs
Que óptima ideia esta: a de divulgar a contextualização desta frase. Tem toda a razão. A maior parte das vezes associa-se esta afirmação a um patriotismo estreito que, aqui se vê, não estava na mente de quem a escreveu.
partilha de silêncios, muito obrigada por me trazer este poema de Ricardo Reis que, de entre os heterónimos de Pessoa, é ao que tenho prestado menos atenção, a não ser a algumas Odes. A maior parte do tempo estou ligada a B. Soares, há dias em que sou toda Álvaro de Campos e outros Alberto Caeiro, e de vez em quando F. Pessoa (ortónimo). Aliás, deste prefiro os textos em prosa, como A Balança de Minerva, O estado mental português, O provincianismo português, etc., e as cartas aos amigos.
Que bela surpresa!
Bjs
Manuela,
Ainda bem que gostou desta ida à fonte para desfazer equívocos e, segundo parece, vai fazer o mesmo, recapitulando algumas leituras, e isso é muito bom.
Beijinho
Analima,
Muito obrigada pelas considerações.
Vejo tantas vezes pessoas com responsabilidades no tratamento da obra de Pessoa cometerem esse erro, quando deviam ser os primeiros a esclarecê-lo, que achei pertinente mostrar o que diz o próprio autor da frase.
Mas este é o meu feitio. Só me convenço das coisas quando as ouço da boca de quem as disse ou as leio a partir do autor das palavras. O "diz que disse" para mim não serve.
Um abraço.
Eu diria: que bom feitio!
Gostei imenso deste sábio esclarecimento!
Também não me contento nada com o "diz que disse" :))
Muito obrigada. "Just perfect".
Um beijinho.
Tem no "partilha de silêncios" um post que penso lhe poderá interessar. bjs
Olá Josefa
Adorei o seu texto e aprender por aqui. Sim que eu gosto imenso de Fernando Pessoa, mas sou uma leiga em coisas de literatura.
Mas gosto de apreciar e de aprender.
Beijinhos
Ana Paula,
Obrigada pelas suas palavras.
Não sei se deva começar a ficar preocupada por nunca ter discordado de mim, até agora!:)
Um beijinho.
partilha de silêncios,
Já fui lê-lo e deixei-lhe um arrazoado daqueles!
Muito obrigada e um beijinho.
Josefa, eu tenho procurado, mas não consigo discordar de si. :)))
É sempre assim com aqueles que revelam certas qualidades que aprecio. Mas, ainda que não estivesse de acordo, não seria grave, julgo. O mais importante para mim é aprender, e isso continuaria a ser certo, por aqui (também no Restolhando).
Um abraço.
Benjamina,
Muito obrigada.
Vi que colocou no seu blogue o nosso Clube e que publicou mais poesia, o que me fez pensar se não estará a fugir à sua "linha editorial", mas não me diga que é leiga em coisas de literatura, porque se o fosse não teria publicado as coisas belíssimas que publicou!
Volto a sublinhar, se na barra lateral a referência ao Clube impedir que lá coloque outros assuntos do seu interesse, saiba que não há qualquer obrigação de o ter ali, aliás é um Clube tão sui generis que nem estatutos tem. O que também faz parte do seu encanto.
Beijinhos.
Josefa
Em resposta ao seu convite para a "partilha de silêncios" ser membro honorário do Clube dos Desassossegados, terei muito gosto.
O que é suposto fazer, para além do desassossego?
bjs
partilha de silêncios, não é necessário fazer mais nada do que aquilo que já fez, que foi mostrar interesse e conhecimento sobre a obra de Fernando Pessoa e dos seus heterónimos, e por isso já lá está no lugar de honra.
Claro que contarei sempre com os seus comentários e a indicação de uma ou outra coisa que eu desconheça, como foi o caso daquele poema de Ricardo Reis, que veio recordar-me que ele não escreveu apenas Odes.
Muito obrigada.
Bjs
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