sábado, 27 de fevereiro de 2010

Fernando Pessoa/ Álvaro de Campos - Aproveitar o tempo

Aproveitar o tempo!
Mas o que é o tempo, que eu o aproveite?
Aproveitar o tempo!
Nenhum dia sem linha...
O trabalho honesto e superior...
O trabalho à Virgílio, à Milton...
Mas é tão difícil ser honesto ou superior!
É tão pouco provável ser Milton ou ser Virgílio!
.
Aproveitar o tempo!
Tirar da alma os bocados precisos - nem mais nem menos -
Para com eles juntar os cubos ajustados
Que fazem gravuras certas na história
(E estão certas também do lado de baixo que se não vê)...
Pôr as sensações em castelo de cartas, pobre China dos serões,
E os pensamentos em dominó, igual contra igual,
E a vontade em carambola difícil.
Imagens de jogos ou de paciências ou de passatempos -
Imagens da vida, imagens das vidas. Imagens da Vida.
.
Verbalismo...
Sim, verbalismo...
Aproveitar o tempo!
Não ter um minuto que o exame de consciência desconheça...
Não ter um acto indefinido nem factício...
Não ter um movimento desconforme com propósitos...
Boas maneiras da alma...
Elegância de persistir...
.
Aproveitar o tempo!
Meu coração está cansado como mendigo verdadeiro.
Meu cérebro está pronto como um fardo posto ao canto.
Meu canto (verbalismo!) está tal como está e é triste.
Aproveitar o tempo!
Desde que comecei a escrever passaram cinco minutos.
Aproveitei-os ou não?
Se não sei se os aproveitei, que saberei de outros minutos?!
.
(Passageira que viajaras tantas vezes no mesmo compartimento comigo
No comboio suburbano,
Chegaste a interessar-te por mim?
Aproveitei o tempo olhando para ti?
Qual foi o ritmo do nosso sossego no comboio andante?
Qual foi o entendimento que não chegámos a ter?
Qual foi a vida que houve nisto? Que foi isto a vida?)
.
Aproveitar o tempo!
Ah, deixem-me não aproveitar nada!
Nem tempo, nem ser, nem memórias de tempo ou de ser!...
Deixem-me ser uma folha de árvore, titilada por brisa,
A poeira de uma estrada involuntária e sozinha,
O vinco deixado na estrada pelas rodas enquanto não vêm outras,
O pião do garoto, que vai a parar,
E oscila, no mesmo movimento que o da alma,
E cai, como caem os deuses, no chão do Destino.
.
Poemas/ Álvaro de Campos

7 comentários:

Manuela Freitas disse...

Gosto deste poema de Àlvaro de Campos, porque aproveitar o tempo como? Nós é que nos convencemos que o tempo se aproveita!...Vou cheia de lugares comuns...até ao fim do meu tempo!...
Um beijo Josefa,
Manuela

partilha de silêncios disse...

Aproveitar o tempo, essa eterna promessa... a elegância de persistir ...

beijinhos

Rudolfo Wolf disse...

Bem, depois de uma série de comentários anteriores espero não estar a invadir o seu espaço.

Sabe uma coisa que me impressiona em Pessoa? É a -para mim estranha- sensação que ele não foi um homem feliz, isto é, não viveu harmonioso e em paz no seu interior e não digo isto pela inquietação imensa que a sua poética e muita da sua prosa revelam, mormente ao nível da conflitualidade imanente da sua heteronímia, mas antes pelas tempestades interiores que transparecem em tantos outros textos. Ora isso espanta-me, digo-o com toda a sinceridade, pois, afinal, o homem legou-nos uma obra imensa e genial o que sempre deveria ser motivo de orgulho -no bom sentido, é claro.

Mas isto é a minha opinião é, claro e não vou empatá-la mais por causa dela.

Desejo-lhe um resto de semana em paz e com saúde

Rudolfo Wolf

Maria Josefa Paias disse...

Obrigada, Manuela.
Beijinho.

Maria Josefa Paias disse...

Lindo, "partilha de silêncios"!
Obrigada e um beijinho.

Maria Josefa Paias disse...

.
Rudolfo,

O próprio Pessoa, através do semi-heterónimo Bernardo Soares, no Livro do Desassossego, diz-nos em alguns textos como odeia a sua própria vida, o tédio que é a sua própria existência, que não a Vida em geral. Onde nos diz também que não é um pessimista mas um triste.

E como achei estranho que, por exemplo, o heterónimo Álvaro de Campos tivesse também poemas em que o estado de alma que reflectia era muito parecido ao de Bernardo Soares, aprofundei um pouco a questão e encontrei uma resposta satisfatória a esta minha estranheza e que é a seguinte: nos últimos anos de vida de Fernando Pessoa todos os seus heterónimos, que nos primeiros escritos são perfeitamente identificáveis enquanto "personalidades" bem definidas, quase confluem nos mesmos estados de alma.

Talvez toda essa conflitualidade interior, que o Rudolfo refere, faça com que muitos de nós encontremos em Pessoa uma identificação, uma similitude com as nossas próprias dores e sofrimentos e, por isso, as suas obras sejam tão marcantes.

Obrigada, paz e saúde para si também.

Rudolfo Wolf disse...

Bom dia, Josefa

Tenho pena de não ter tempo suficiente para acompanhar estes seus espaços como deve ser, para ler os textos que apresenta, os comentários que faz e, naturalmente, para elaborar os meus comentários. Mas não tenho alternativa.
Não sei se é habitual respondermos tão atrasadamente às palavras que nos são dirigidas mas há vários dias que ando para o fazer aqui e como só agora se me deparou uma boa oportunidade, aproveito-a. Espero não estar a ser inconveniente e muito menos a faltar a qualquer eventual regra de cortesia que possa haver neste universo digital.

Pois bem, Josefa, vejo-me a concordar consigo.
Confesso que do Bernardo Soares li apenas os extractos do "Livro do Desassossego" que o Professor David Mourão-Ferreira compilou em "O Rosto e as Máscaras", não dispondo, por isso dos dados que refere. Mas faz todo o sentido e essa distinção que refere entre o ser-se pessimista ou triste está contida em muita da poesia que li dele, sobretudo em nome próprio.
Mas também dou comigo a pensar que isso não deixa de ser surpreendente, pois afinal aquilo que, pessoalmente e salvaguardando a modéstia da minha opinião, como é bom de ver, desde sempre mais me impressionou no homem foi a ousadia –que outro nome lhe poderia dar?- de pensar em fazer uma obra literária e de a ter conseguido fazer –mesmo admitindo a pertinência da observação que fez quanto à confusão que nos últimos poderemos encontrar entre os heterónimos e o próprio Pessoa, coisa que não me parece ser suficiente para lhe retirar esse mérito imenso de ter conseguido dar corpo a uma obra literária que, por sinal, até é bem vasta e multifacetada.
Para quem conseguiu chegar tão longe e tenho para mim que ele teria consciência da grandeza e importância daquilo que escreveu, seria de esperar uma tranquilidade interior que marca a vida das pessoas felizes. Enfim, mas isto é uma maneira pessoal de ver o mundo e naturalmente sei que os seres humanos não obedecem a leis de definição de personalidades, e ainda bem que é assim.
Não a empato mais e mais uma vez peço que me desculpe por estar a voltar a este assunto tantos dias depois.
Votos de muita paz e saúde para si

Rudolfo Wolf